foto: Bruno Espadana

31 janeiro 2007

#  Ricochete: a falácia das razões económicas

Depois de andar a denunciar falácias do Não, vou agora apontar o dedo a uma falácia do Sim. Faço-o por três razões:
  • Por respeito à verdade
  • Por respeito às minhas convicções
  • Porque é uma falácia que faz ricochete e prejudica os objectivos do Sim

A falácia em causa (que, obviamente, não é de todos os apoiantes do Sim) é uma mistura de três falácias: ocultação de factos, generalização abusiva e, o mais importante porque determina as anteriores, argumentum ad crepidam (o argumento da miséria).

Pelo que foi dito em último lugar já adivinham a que me refiro: ao bater na mesma tecla das razões económicas como subjacentes aos casos de aborto clandestino, a que os sindicalistas (como segunda-feira à noite no Prós & Contras) acrescentam, na mesma linha, razões de ordem laboral (pressão patronal, ameaça de despedimento, ciclo laboral incompatível com a maternidade).

Não me interpretem mal: tudo isso é verdade... mas não é a verdade toda (por isso falo em ocultação de factos e generalização abusiva).
Há certamente mulheres para quem esse factor foi o determinante, há outras para quem foi mais um factor, há ainda outras para quem as questões económicas e laborais não foram, de todo, um factor na equação. Os dados do Estudo-Base sobre as Práticas de Aborto [voluntário] em Portugal, da responsabilidade da Associação para o Planeamento da Família, estão aí: só 14,1% das mulheres apontaram falta de condições económicas para a realização do aborto; as restantes referem motivos como pressões familiares (8,0%) e/ou do marido/companheiro (9,4%), instabilidade conjugal (9,1%), problemas de saúde não enquadráveis na lei (4,2%), idade considerada inadequada (demasiado nova, 17,8%, ou demasiado velha, 2,6%)... ou por não desejar de todo ter filhos (13,2%).
O que é preciso dizer (eu pelo menos digo-o, porque é no que acredito) é que tudo isso são motivos legítimos* — ou, pelo menos, nenhum de nós tem legitimidade para dizer que não o são. Não é preciso descer à caricatura da mulher, exagerando o relevo de um aspecto, para, despertado em terceiros o magnânimo instinto de misericórdia, lhe garantir a remissão. Menos grave do que as praticadas pelos apoiantes do Não, esta pode ser também uma forma de menorização paternalista das mulheres, para as quais seria preciso forjar desculpas piedosas (argumentum ad misericordiam — afinal são quatro).

* (Parênteses: note-se que, no que toca à «pressão do marido/companheiro», considero legítima a cedência da mulher a essa pressão — milénios de violência doméstica, física e psicológica, mostram-nos como pode ser inexorável —, não a pressão em si, que é inaceitável.)

Mas não só por respeito à verdade e às minhas convicções sinto repugnância por esta hipertrofia do factor económico: adicionalmente, a insistência nessa tecla permite aos defensores do Não insinuarem que tudo se resolve com dinheiro, com o apoio financeiro às mulheres que consideram a possibilidade de abortar. Veja-se a intervenção do Dr. João Paulo Malta no Prós & Contras, para quem a solução milagrosa para acabar com o aborto clandestino consiste em deixar a lei na mesma e usar antes o dinheiro que o Estado irá supostamente gastar a financiar abortos (se o Sim vencer) para incentivar a maternidade através do apoio monetário às mulheres mais pobres. Como se o abono de família (por elevado que fosse) resolvesse todos os problemas de saúde, nos desse a maturidade que ainda tarda ou devolvesse a juventude perdida; como se os subsídios estatais criassem, naqueles que a não têm, a vontade de ter filhos.
(A falta de subvenções pode, realisticamente, demover os que anseiam a maternidade/paternidade, mas o inverso não é verdade entre as pessoas com escrúpulos, para quem os filhos não são “galinhas dos ovos de ouro” ou máquinas com que mugir a “vaca leiteira” do Estado.)

É preciso passar a mensagem, por isso repito-o:
O dinheiro não resolve tudo, porque a falta dele não é o único factor, nem sequer o de maior peso; há muitos mais motivos que levam uma mulher a abortar e todos são legítimos — ou, pelo menos, nenhum de nós tem legitimidade para dizer que não o são.

Etiquetas: ,

#  Esclarecimento (actualizado)

Acabo de receber de uma leitora a seguinte informação:
Era somente para o informar que o artigo 142 teve uma revisão em 1993 e que o prazo limite em caso de violação passou para 16 semanas e para malformações passou para 24 semanas.

É estranho, porque o texto do Código Penal que tenho usado é o que está disponível no site da Polícia Judiciária, que é precedido pelo Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de Março (que o aprova), e lá constam os prazos que tenho referido...

Não digo que quem me escreve não tenha razão no que diz (já reparei que muita gente fala em prazos de 24 semanas, que não constam do texto acima indicado), mas então a PJ disponibiliza uma versão errada da Lei... (Irei averiguar isso.)

Adenda (após verificação): Efectivamente os prazos foram alterados, mas em 1997 (Lei n.º 90/97, de 30 de Julho)
[Em abono da verdade, a rectificação da data é mérito da mesma leitora e não meu.]
Está confirmada a vergonha: a Polícia Judiciária divulga no seu site uma versão desactualizada do Código Penal!

Seja como for, a questão do valor numérico exacto é irrelevante para a desconstrução da falácia das 10 semanas e 1 dia e para todas as falácias similares.

Etiquetas: ,

30 janeiro 2007

#  Da multifuncionalidade das crianças

Mário Negreiros, Jornal de Negócios, hoje:

Inocentes úteis

Olho para as criancinhas a empunhar cartazes na manifestação do último domingo pelo NÃO e pergunto-me como se formulará a questão do aborto quando não se dispõe de mais do que do universo infantil.

Logo à partida, a ideia de uma mulher ter na barriga um filho indesejado deve ser estranhíssima num universo onde MÃE é outra maneira de dizer AMOR. Será preciso diabolizar essa mulher para que as coisas voltem a fazer sentido.

[...] Dizer-lhe que há mães que vão ao médico para arrancar o próprio filho da barriga e deitá-lo ao lixo é dizer-lhe que há coisas muito piores do que a mais horrível história de bruxas jamais inventada.

[...] Estão aí envolvidos aspectos biológicos, éticos, sociais etc., etc., etc., que vão muito além da capacidade de compreensão de uma criança e que, a rigor, nem os adultos dominam com segurança. Por isso os cartazes antiaborto postos nas mãos das crianças são abusivos. Envolvem as crianças num tema que não dominam e de que deveriam ser poupadas enquanto não tivessem os elementos de que precisam para formar uma posição ou para, ao menos, terem dúvidas.

Excelentemente exposto: Da parte do Não, o «amor às crianças não nascidas» caminha de mãos dadas com a instrumentalização das crianças* (que no seu guia de conversação se designam «crianças nascidas»). Para o Não, os filhos não são um fim em si mesmo, um sujeito, mas um meio para algo maior: servem para combater o decréscimo populacional (sem termos de importar chineses, pretos e ucranianos) e salvar a Segurança Social; servem para “consolidar” um casamento (que de outra forma se desmorona, e frequentemente desmorona-se mesmo assim); servem para «dar um ar q'rido à coisa» nos anúncio de óleo para fritar; servem para carregar os cartazes da indignação dos pais* — e, claro, graças ao Art.º 140º, n.º 3 do Código Penal, servem para punir as rameiras/frívolas/levianas. Há mil utilizações para uma criança — custa a crer que não se façam mais.

* (Adenda: não se contentando com a instrumentalização dos seus próprios filhos, manipulam também os filhos dos outros.)


O excerto seguinte vai na linha de algo que escrevi ontem:
E põem asneiras nas bocas, ou nas mãos dos próprios filhos — “Sou feliz porque nasci. Obrigado, pais”, foi um dos cartazes vistos nas mãos de uma criança na manifestação de domingo. Podia ser “Sou infeliz porque nasci, malditos pais” , “Sou mais ou menos porque nasci, pais”, “Sou engenheiro-químico porque nasci, olá pais” ou “tenho cancro e vou morrer porque nasci, adeus pais”, para não falar em “tenho fome, fui violentada, humilhada e espancada porque nasci”.

Quando, isto digo eu, os únicos dizeres verdadeiros seriam: «Não pedi para nascer nem o contrário, não sei bem o que faço aqui, o que é esta coisa de existir — e parece-me que o mesmo se passa com vocês. E agora, pais?»


O artigo de Mário Negreiros termina de forma magistral:
Mas sem crianças não se fazem manifestações antiaborto porque o que está subjacente na exposição das crianças e dos seus cartazes é que os amigos da vida e das crianças são pelo NÃO, e os que estão pelo SIM são, necessariamente, inimigos da vida e detestam as crianças e são feios e muito maus. É para servirem de prova e de testemunho que as crianças são levadas às manifestações antiaborto, muito embora não saibam exactamente o que estão ali a provar ou a testemunhar. São inocentes. Mas são úteis.

E, ao contrário do proverbial «idiota útil», são fotogénicas.

Etiquetas: ,

#  Magritte Aguiar Branco

Magritte: Ceci n’est past une pipe
Descobrimos a noite passada em José Pedro Aguiar Branco um surrealista: para este ex-ministro da Justiça, uma alteração ao Código Penal não tem nada a ver com o Código Penal!

O Código Penal em vigor diz:
Artigo 140.º
Aborto
[...]
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.

Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível
1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.

O objectivo do Referendo é decidir se se acrescenta mais um ponto ao Artigo 142.º, deixando de considerar crime a interrupção da gravidez realizada a pedido da mulher nas primeiras 10 semanas, nas condições procedimentais a definir (caso o Sim vença) pela Assembleia da República.

É isto que está a referendo: se, sim ou não, haverá uma nova situação que o Código Penal não considerará como sendo crime... mas a Aguiar Branco diz que isto nada tem a ver com o Código Penal.


A bem da verdade, tenho de dizer que a comparação do exercício demagógico (porque fruto de ignorância certamente não é...) de José Pedro Aguiar Branco com o exercício artístico de René Magritte é injusto... para Magritte.

Magritte queria, com humor, alertar-nos para a diferença entre a realidade e a representação dessa mesma realidade, entre um cachimbo e a imagem de um cachimbo.

Magritte Aguiar BrancoJosé Pedro Aguiar Branco, pelo contrário, não nos quer alertar para nada; o seu objectivo é convencer-nos de que é aceitável distinguir a letra da Lei da prática da Lei; pedagógico, este ex-ministro da Justiça vem dizer-nos que num Estado de Direito podemos, despudoradamente, ter a Lei a dizer uma coisa, mas pura e simplesmente ignorá-la. Em nome da manutenção das aparências, José Pedro Aguiar Branco advoga que façamos da Lei letra morta.

José Pedro Aguiar Branco, e muitos como ele, apontam para o Código Penal e, à maneira de um Magritte sem arte e sem escrúpulos, dizem: «Isto não é a Lei — isto são letras escritas num papel!»

Etiquetas: ,

29 janeiro 2007

#  Esclarecer, para combater a ignorância

O principal inimigo do Sim, para além da abstenção, é mesmo a ignorância. Não digo isso porque ache que exista uma regra geral do tipo “Ignorante => Pelo Não” (muito menos do tipo “Ignorante <=> Pelo Não”). Digo-o porque vejo que muitas pessoas, sinceramente, não sabem do que se fala quando falamos de aborto.

Constatei-o há coisa de um mês na televisão (não me lembro em que canal): uma jornalista abordava na rua uma senhora de meia-idade e perguntava-lhe o que achava da despenalização do aborto. A senhora, muito indignada, dizia que isso era uma atrocidade, que não podia admitir-se tal coisa; e terminava com um desabafo do tipo:
— Ao que isto chegou! No meu tempo não havia nada disto!
— No seu tempo não havia abortos?! — perguntou espantada a jornalista.
— Não, não havia tal coisa!
E a jornalista, num rasgo raro de clarividência:
— E... “desmanchos”?...
Ah! Desmanchos sim... [A voz assumindo um tom de «Isso agora é outra conversa!»]

É contra este tipo de ignorância que temos de lutar.

A luta vai ser dura, e só será vencida se empreendermos uma campanha de esclarecimento que explique aos eleitores que o aborto não é “matar criancinhas” — “aborto” e “interrupção voluntária da gravidez” (expressão que me desagrada) são apenas outras designações para os “desmanchos” de que falavam as nossas mães e avós.

Etiquetas: ,

#  O argumento «Ich bin ein Fetus!»

Uma das estratégias dos opositores à despenalização da interrupção voluntária da gravidez é apresentarem-nos imagens de belos e sorridentes bebés ou crianças de tenra idade, acompanhadas de dizeres como «Eu não fui vítima de aborto» (a versão americana, mais abreviadinha, é «Lucky me!»). Uma variante é lançarem a interrogação, que vi escrita num jornal universitário em 1998, «E se a minha mãe me tivesse abortado?» ou, procurando tocar mais fundo o seu interlocutor, «Gostavas que a tua mãe tivesse abortado quando estava grávida de ti?». Estas perguntas e a apresentação destes bebés e crianças com os respectivos dizeres são falácias, pois pretendem pôr-nos a pensar noutra coisa que não no que realmente está à discussão.

1. Uma mulher grávida que considera a possibilidade de abortar não está a decidir se um miúdo sorridente de três anos de idade (o «seu filho») merece ou não viver: não está, estalinistamente, a apagar qualquer história ou percurso de vida ou a suprimir qualquer personagem — quem do contrário nos quer convencer está a insinuar na mulher uma culpa que ela não tem. O feto que ela carrega não é, naquele momento, alguém, muito menos alguém com quem ela tenha uma relação especial; é pouco mais do que uma abstracção (uma possibilidade), e se abortar é acabar com uma vida no sentido puramente biológico, não é certamente acabar com uma vida no sentido das relações humanas.

Sejamos verdadeiros: por muito que a versão romântica da maternidade nos tente convencer do contrário, a relação afectiva mãe-filho (e mais ainda, pai-filho) só começa efectivamente após o nascimento, por vezes dias após (está demonstrado que o contacto físico, de pele, tem aí um papel importante). Isto não é coisa que se ouça muito dita por aí, pois a sombra do estigma social da “mãe desnaturada” paira omnipresente, mas algumas mães acabam anos depois por confessar à boca pequena (e apenas a pessoas do seu círculo mais íntimo) que quando viram os seus filhos pela primeira vez sentiram... nada, um horrível nada! Aquele ser que lhe apresentavam era supostamente «sangue do seu sangue» — e elas não sentiam qualquer conexão especial, nada daquilo que vem nos filmes. Para sua desilusão e susto (o estigma, o estigma!...), era um estranho — e só a custo (os familiares à volta da cama do hospital...) iam dizendo, sem o sentirem, que era bonito. Depois, claro, o contacto físico, o calor, o toque, todos os cinco sentidos, a total desprotecção daquele ser que se apresenta — real, concreto — à sua frente, mais o esboço do que virá a ser uma personalidade («conjunto de qualidades que definem a individualidade de uma pessoa») — tudo isso se encarrega de criar o perdurável laço entre mãe e filho.

Daí que seja uma falácia a apresentação das fotografias dos tais petizes «sortudos» que não foram abortados. Colocam-nos perante uma situação diferente (porque com personagens diferentes e biologicamente a posteriori) e tentam convencer-nos de que a decisão de não levar por diante uma gravidez (uma decisão tomada a priori), mais do que impedir que algo como aquilo acontecesse, efectivamente acabou com aquilo; pretendem desencadear em nós um processo de identificação emotiva com a criança «assassinada» (a da foto, não o «Zézinho», que como feto é de mais difícil empatia); pretendem fazer-nos ver na grávida que aborta (que podemos ser nós) uma infanticida e na criança sorridente da fotografia a real vítima desse infanticídio.


2. É também a tentativa de desencadear uma emotiva identificação do interlocutor com o feto que determina as perguntas «Gostavas que a tua mãe tivesse abortado quando estava grávida de ti?» ou «E se a minha mãe me tivesse abortado?». Mas agora com um twist especial: o feto em perigo não é apenas um ser frágil (a “criança”) que nos desperta a compaixão — agora o feto somos nós, é a nossa própria vida que supostamente está ameaçada.

Do ponto de vista filosófico, «Gostavas que a tua mãe tivesse abortado quando estava grávida de ti?» é uma pergunta absurda: um feto (que é isso que é abortado — e não uma criança) não tem gostos nem opiniões; e mesmo que tivesse gostos e opiniões (vamos admitir isso, for argument’s sake), não poderia prestar-nos testemunho quanto à experiência (que só poderia existir a posteriori, pelo que não existiria, de facto); e mesmo admitindo uma outra existência para lá desta — bem, nada nos garante que essa não será melhor do que a que (hipoteticamente) teria «do lado de cá» (ou melhor, a sabedoria popular garante-nos que se parte «desta para melhor»), mas de qualquer maneira o ex-feto-testemunha não teria termo de comparação.

3. A pergunta «E se a minha mãe me tivesse abortado?» não é melhor (é igualmente absurda), mas pelo menos tem uma resposta: Se a minha mãe me tivesse abortado, eu não estaria aqui a perguntar-me o que teria acontecido na situação contrária.

Esta seria aparentemente uma questão que me tocaria uma corda sensível: terceiro filho, assumidamente o resultado de uma gravidez não planeada (vim destruir a simetria perfeita do «casalinho» que a sociedade erigiu como ambição máxima dos progenitores — até ser destronada pela realidade do mercado imobiliário), reuno em mim todas as condições para me poder considerar um dos «sortudos» que escapou por pouco à versão abortiva da espada de Dâmocles. Mas é uma falsa questão: se há alguma coisa pela qual devo estar agradecido aos meus pais (e há), é por se terem esforçado por me dar a melhor vida (extra-uterina) que lhes foi possível providenciar — não por me gerarem (ainda que inadvertidamente), não por decidirem manter essa gravidez, não por me «darem a vida» no sentido biológico do termo. Ao contrário do que dizem alguns cartazes, os fetos não pedem para nascer.* (Em todo o rigor, nesses cartazes do “Não” quem pede para nascer não são fetos, mas uma vez mais bebés — que já nasceram, pelo que não têm de o pedir — e, estranho: apelam sorridentes e não desesperados, como seria de esperar.)

Se a minha mãe me tivesse abortado, a minha vida não seria nem pior nem melhor, porque não seria de todo. O nada não tem nostalgia do ser — só o ser pode ter nostalgia do nada (mas uma nostalgia falsa, claro, porque o desconhece). Se me permitem um cruzamento entre La Palice e a Floribella, o nada não tem nada e, não tendo tudo, também não lhe falta nada. O nada é nada.

* (Adenda: aparentemente, não só pedem como o fazem por escrito, e mesmo após terem sido abortados ainda têm capacidade para lavrar o seu protesto. Pormenores neste post sobre a falta de decência de alguns apoiantes do Não.)

4. Voltando ao ponto de partida, as imagens dos sorridentes meninos «sortudos» que não foram «vítimas de aborto», os apelos dos bebés que pedem que os «deixemos nascer», as perguntas do tipo «Gostavas que a tua mãe tivesse abortado quando estava grávida de ti?», tudo isso são falácias — porque são absurdas; porque insinuam na mulher uma culpa que ela não tem; porque a nossa vida não é uma daquelas histórias com dois finais alternativos, em que podemos sempre quebrar as regras do jogo, compará-las e optar pela que mais nos agradar (e os do Não supostamente defendem a melhor versão); porque é uma manipulação grosseira que tenta desviar a nossa atenção do que realmente está em jogo: a criminalização ou não da mulher que aborta.

Esta espécie de argumento «Ich bin ein Fetus» não apenas tenta induzir em nós uma despropositada identificação com o feto — trata-nos igualmente como se tivéssemos a actividade cerebral de um.

Etiquetas: ,

#  Teoria da Conspiração

Andreia Neves no “Assim NÃO”:
Foi, uma jogada de mestre, dos defensores do sim terem conseguido que o ministério público a começasse a levantar processos-crime depois do Não ter saído vencedor do referendo de 98. Com todo o circo que isso criou de escutas telefónicas, detenções em directo, julgamentos cheios, servindo o intuito claro de chocar a opinião pública que, evidentemente, ficou chocada por se criminalizar um costume que até então ninguém ousara criminalizar.

Para Teoria da Conspiração, Teoria da Conspiração e meia:

Se fosse realmente uma «jogada de mestre», os apoiantes da despenalização não teriam feito campanha pela não condenação das mulheres em julgamento (no que até muitos apoiantes do Sim consideraram uma inaceitável pressão sobre o poder judicial); assim teríamos comovedoras imagens de mulheres atrás das grades para exibir — as imagens que, precisamente, os do Não nos apontam como não tendo nos últimos 30 anos.

Ou teríamos colado do lado de fora de hospitais públicos cartazes a favor do Não, para depois chamarmos as câmaras de televisão e acusá-los de parcialidade...


CENTREMO-NOS NO DEBATE E DEIXEMO-NOS DE DESCONVERSAS!

Etiquetas: ,

28 janeiro 2007

#  Bem dito

Frei Bento Domingues, Público de hoje:
Creio que é compatível o voto na despenalização e ser — por pensamentos, palavras e obra — pela cultura da vida em todas as circunstâncias e contra o aborto. O “SIM” à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, embora haja sempre doidos e doidas para tudo.

Etiquetas: ,

27 janeiro 2007

#  A diferença não está na barriga

Os movimentos do Não adoram exibir barrigas de grávidas. Mas chega de areia para os olhos: a diferença entre uma mulher que vai votar Sim e uma que vai votar Não não está na barriga.

A diferença não está na barriga: vai votar sim / vai votar não
Confissão: Imagem construída por mim à custa do copy/paste e da violação dos direitos de autor de um defensor da causa contrária.

Etiquetas: ,

#  Despenalizar também a autoria material do aborto

Da análise anterior, Tiago Mendes deriva uma conclusão adicional: não faz sentido despenalizar a autoria moral do aborto e manter a penalização sobre a autoria material, isto é, se a mulher que solicita o aborto deixa de ser punida, também terão de deixar de o ser aqueles que lhe fazem o aborto.

Tiago Mendes esquece-se de especificar que isto só é verdade — só deverá ser verdade — em relação aos autores materiais que estão profissionalmente habilitados (em termos de conhecimentos teóricos e práticos legalmente reconhecidos) para realizar a intervenção. Ou seja, a sanção deverá cessar em relação ao pessoal médico e de enfermagem, mas manter-se para todos os “curiosos” e “habilidosos” de vão de escada.

Que não se entenda isto como um estatuto de excepção para a prática de aborto, como uma discriminação abusiva de uns em favor de outros, muito menos como um sinal de um lobby das clínicas de aborto (actuais e futuras) que procura assegurar um monopólio. A discriminação entre o acto realizado por pessoal médico e de enfermagem habilitado para tal (a ser despenalizado) e o acto realizado por “práticos” autodidactas (que deverá permanecer ilegal) não deriva nem da natureza excepcional do aborto, nem de interesses mais ou menos ocultos; simplesmente, tal como tantas outras actividades profissionais (da contabilidade à advocacia passando pela condução profissional de veículos de passageiros, da engenharia civil à arquitectura), o acto médico-cirúrgico está reservado aos profissionais legalmente habilitados a tal (o que no caso da Medicina e da Enfermagem pressupõe formação académica e prática adequada e oficialmente reconhecida). Ora, o aborto é um acto médico-cirúrgico, pelo que nada justifica que seja menos regulado do que a prescrição de um medicamento sujeito a receita médica, a extracção do apêndice ou das amígdalas, o transplante de um rim ou a realização de uma endoscopia.

Etiquetas: ,

#  Da (quase) desnecessidade da comparticipação estatal do aborto

Num longo e interessantíssimo artigo publicado ontem no seu blogue, Tiago Mendes demonstra (mesmo àqueles que, leigos como eu, resistam ao susto inicial de termos económicos como «lucro normal», «rendas económicas», «rendas por informação imperfeita», etc.), demonstra, dizia eu, que os tão diabolizados lucros do negócio do aborto clandestino são, esmagadoramente, legítimos.

Para sintetizar (mas o melhor é mesmo ler o artigo todo), Tiago Mendes divide esses lucros em cinco componentes, que analisa separadamente:
  1. A simples remuneração do serviço prestado (é preciso não esquecer que há um serviço que é requerido por alguém e efectivamente prestado).
  2. O prémio de risco, resultante da ilegalidade do acto. (Será porventura a componente que mais agrava os preços.)
  3. A falta de informação mantém os preços mais altos (em vez de uma completa e aberta rede de informação sobre os praticantes de aborto, temos uma infinidade de micro-redes clandestinas, cada uma gravitando à volta da sua clínica em posição monopolista de facto).
  4. O lucro obtido por “aproveitamento” da situação de fragilidade da mulher (que, dada a sua situação — urgência, clandestinidade, falta de alternativas ou desconhecimento delas —, tem pouco “poder negocial” e vê-se forçada a aceitar o preço que lhe é apresentado, mesmo que exorbitado).
  5. Os lucros resultantes de outros factores, nomeadamente a qualidade do serviço prestado (todo um espectro, do vão de escada à clínica topo de gama) e o facto de, sendo ilegal, haver menos prestadores deste serviço do que numa situação de legalidade (lei da oferta e da procura).

A conclusão de Tiago Mendes, e que eu subscrevo, é que das cinco componentes apenas a quarta é ilegítima.

Tiago Mendes promete para um post futuro demonstrar que, ao contrário do que muitos (mesmo do lado do Sim) afirmam, a comparticipação por parte do Estado não é condição sine qua non para a melhoria das condições do aborto prestado às mulheres mais pobres. Como diz o autor do “Logicamente, sim”:
«O fim da ilicitude do aborto, por si só, permitirá melhorias de vária ordem.»

Se o Tiago me permite, eu, como bom aluno, tentarei antecipar a demonstração do Mestre:
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 2, pois deixará de haver risco legal.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 3, pois a legalidade trará o acréscimo da informação, livremente acessível, sobre quem presta o serviço e a que preço.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 4, pois o poder negocial da mulher aumenta: está mais bem informada, não tem sobre si o handicap da ilegalidade. Só não diminuirá o custo advindo da urgência e do desejo de privacidade (que não desaparece com a legalização): não há tempo para uma longa e completa pesquisa ao mercado, à procura da melhor relação qualidade/preço, muito menos se irá abrir um concurso público para a prestação do aborto... mas a disponibilização livre de informação sobre as clínicas de aborto existentes tornará a escolha mais rápida e acertada.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá a componente 5, pois, ainda que não vá haver uma explosão de clínicas de aborto (como os alarmistas do Não nos querem convencer), haverá certamente um aumento do seu número, porque são as sanções resultantes do interdito legal e não as reservas éticas ou morais que demovem muito do pessoal médico e de enfermagem da prática da interrupção da gravidez.

A grande conclusão é que a legalização, por si só, diminuirá em muito os custos de um aborto, tornando a interrupção da gravidez em condições de segurança e higiene mais acessível a todos os estratos sociais. (Uma vez mais, que não se pense que o simples facto de ser mais barato vai levar ao aumento desmedido do número de abortos — ninguém faz um aborto apenas para não perder “preços de ocasião”...)

Etiquetas: ,

#  Tem a palavra um especialista em reprodução

Jornal de Notícias, 25/01/2007:
Cientista de proa na procriação medicamente assistida, Mário de Sousa é “pai” de centenas de filhos de casais inférteis. Mas vai votar Sim no referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Porque a vida da mulher é um todo, com corpo e alma, que tem primazia sobre o feto. Este, diz, é “um anexo sem autonomia” até aos cinco meses, altura em que o cérebro começa a funcionar.

[...]

JN: Disse numa recente iniciativa dos Médicos pela Escolha que o feto é “um anexo sem autonomia” da mãe até às 24 semanas.

Mário Sousa: Só aí ganha autonomia para sobreviver. Até lá, tem os órgãos em esboço, mas não são funcionais. E um esboço é um esboço. Isto da definição das oito semanas como aquelas em que acaba o período embrionário e inicia-se o período fetal é um artifício. O pulmão só funciona a partir das 28 semanas. A tiróide só segrega hormonas aos quatro meses. O cérebro só amadurece a partir dos cinco meses, aí os neurónios conseguem permitir ao feto o movimento voluntário. Se perguntar às mulheres quando sentem o primeiro pontapé, todas são unânimes em dizer seis meses.

[...]

E mais à frente:
Mário Sousa: [...] sendo muito rigoroso em termos de fisiologia fetal, o feto não é capaz de sobreviver fora do útero. Idealmente, se pudéssemos tirá-lo logo e dá-lo para adopção, seria a solução. Mas como não tem viabilidade, a primazia é da mãe. Para nós o mais importante é o respeito pela vida que está à nossa frente: a da mulher.

Etiquetas: ,

26 janeiro 2007

#  Porque o aborto é uma coisa séria...

... enquanto durar o debate pré-referendário não exibirei na barra lateral o meu cartoon-mote («I’m frustrated because I whish I were criticizing greater things»).

Assim que possa arranjarei um substituto adequado e colocarei dois ou três links para os blogues fundamentais e para os Movimentos oficializados de apoio ao Sim.

Etiquetas: ,

#  Eles têm o “Zézinho” — nós temos a Paula Rêgo

Série “Untitled”, porque há quem queira que o aborto permaneça no não-dito:

Paula Rêgo: 'Untitled #1' Paula Rêgo: 'Untitled #2' Paula Rêgo: 'Untitled #3' Paula Rêgo: 'Untitled #4' Paula Rêgo: 'Untitled #5' Paula Rêgo: 'Untitled #6' Paula Rêgo: 'Untitled #7' Paula Rêgo: 'Untitled #8' Paula Rêgo: 'Untitled #9' Paula Rêgo: 'Untitled #10' Paula Rêgo: 'Untitled - Tryptic'

Etiquetas: , ,

#  A falácia das 10 semanas e 1 dia

Uma das inúmeras falácias do Não reza assim:
Que lógica é esta, que se a mulher abortar até às 10 semanas está tudo bem, ninguém tem nada com isso — mas, se aborta às 10 semanas e 1 dia, já é crime e deve ir para a prisão?!

A questão de a lei despenalizar algo até um certo limite e penalizar para lá desse limite não deveria horrorizar ninguém, pois acontece nas mais variadas matérias (legais e não legais): resulta de uma necessidade prática, uma vez que a lei é supostamente para ser aplicada na prática.

Em Portugal, um aluno com 8,4 valores reprova — com 8,5 tem direito a uma prova oral e à respectiva oportunidade de passar; no entanto, o aluno com 8,5 só obteve uma nota 1,19% superior ao infortunado que inapelavelmente reprovou com 8,4. De igual forma, um aluno que obtenha 9,4 valores na prova escrita reprovará se não se submeter (com sucesso) a uma prova oral, enquanto o aluno que obteve 9,5 valores (uns míseros 1,06% mais) está aprovado sem mais obrigações.

Avançando para o foro criminal: em Portugal, um condutor que seja apanhado a conduzir com 1,2 gramas de álcool por litro de sangue é imediatamente detido e presente a tribunal pela prática de um crime; já o condutor cuja taxa de alcoolemia seja de 1,19 g/l é simplesmente multado e inibido de conduzir, não sendo acusado de qualquer crime. Ou seja, um ínfimos 0,84% mais de álcool no sangue são o suficiente para que o primeiro seja um criminoso e o segundo não.

Voltando à questão do “risco no chão” entre as 10 semanas (70 dias) e as 10 semanas e 1 dia (logo, 71 dias): a diferença é de mais 1,43%, bem superior à dos casos anteriores, que no entanto são pacíficos.

Mas poderão dizer: «Aqui estamos a discutir uma questão de vida ou de morte, de considerarmos que um ser é ou não já humano (e com os respectivos direitos) — não de aprovação em exames ou condução sob o efeito do álcool.» Concedido. Mas então, por que não questionam o prazo de 12 semanas para se realizar legalmente um aborto e «evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida» (Art.º 142.º, n.º 1, alínea b do Código Penal)? Ou o prazo de 16 semanas, nos casos em que a «gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual» [leia-se: violação] (alínea d)? Ou ainda o prazo de 24 semanas para realizar legalmente um aborto se houver «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita» (alínea c)? Ou, pela mesma alínea, a possibilidade de abortar «a todo o tempo» (isto é, sem qualquer prazo) se o feto for considerado inviável? Se o feto mal-formado não é um ser humano às 24 semanas (porque em Portugal não há pena de morte, logo a única conclusão é que a lei não reconhece o feto como um ser humano de facto), então, pela lógica do N+1, também não o é às 24 semanas e 1 dia. E se já o é às 24 semanas (até mesmo menos 1 dia), então temos de declarar o Art.º 142.º do Código Penal como inconstitucional, porque este artigo, na prática, condena à morte o feto disforme.

A lógica do N+1, qual paradoxo de Zenão, tem duas consequências extremas e mutuamente exclusivas, contraditórias: dependendo do sentido que tomarmos na sucessão numérica, ora chegaremos à conclusão de que o feto é um ser humano (logo, pleno de direitos) desde o momento zero da fecundação — donde derivamos a proibição total de todos os abortos, em todas as circunstâncias —, ora concluiremos que nem 9 meses chegam para que passe a ser um humano (ganhando, enfim, os respectivos direitos) — e consequentemente não existe limite temporal para a realização do aborto.

Etiquetas: ,

#  Conheço dois casos assim

Maria João Pires, no blogue “Sim no referendo”:
Claro que também há gente, como uma senhora que acompanhou a filha a uma parteira no dia seguinte [ao Referendo de 1998], que proclamava alto e bom som ter votado Não. «Votou não?? e hoje está aqui a fazer uma interupção com a sua filha?», «Mas a minha filha é um caso diferente, foi um acidente»... ah! pois, as nossas filhas são sempre diferentes das outras, essas putas ou ignorantes, que fornicam inconscientemente e que por isso merecem ser “castigadas” com um filho.

Etiquetas: ,

#  Irá a descriminalização «promover o aborto»?

Outro argumento frequente do campo do Não é que a «liberalização» (como eles gostam de dizer) do aborto irá resultar num aumento do número de abortos: não só a descriminalização irá passar a mensagem de que «Abortar não é errado», como o facto de o Estado arcar com a factura funcionará como uma efectiva promoção da prática abortiva. (Uma espécie de “Happy hour” do aborto, «’Bora lá, que é grátis!»? A imaginação de certos apoiantes do Não entra bem fundo no domínio mais doentio e perverso.)

Pergunto a quem assim pensa: se o facto de o Estado pagar os custos de um aborto realizado em condições de segurança (à mulher que solicite esse apoio, por falta de meios financeiros próprios para o pagar ela) constitui supostamente um incentivo à prática indiscriminada e galopante de abortos — poderemos por analogia sustentar que o facto de o Estado arcar com os custos de um advogado oficioso (ao réu que solicite esse apoio, por falta de meios financeiros próprios para ele mesmo contratar um advogado) constitui um incentivo à prática indiscriminada e galopante dos mais variados crimes, «’Bora assassinar e violar, que ser réu é grátis!»?
E se da primeira suposta relação causal derivam eles a conclusão de que o Estado não deve assegurar as condições mínimas de segurança na prática do aborto, também defenderão que se deveria acabar com a garantia de um advogado oficioso sem custos para o réu? É que, ainda que confessada e indubitavelmente culpado, um assassino/violador (que todos querem ver na cadeia) tem direito à sua defesa, paga com os nossos impostos — por que é que uma mulher que aborta (que os do Sim afirmam não ser criminosa, e até os do Não dizem precisar mais de ajuda do que de castigo) há-de ser menos digna do apoio do Estado?

Mas não nos confundamos: muitíssimo mais importante do que decidir quem paga o aborto* (não é isso que está a referendo), é decidir se a mulher que aborta deve ou não ser considerada criminosa e arriscar-se a 3 anos de prisão.


* Quem põe a tónica na comparticipação do Estado ou anda a ver demasiados filmes americanos de advogados e tribunais («Let’s not waste the tax-payers money!») ou então quer atirar areia para os olhos do eleitor desprevenido, desviando-o do fundamental. Como disse, e bem, Tiago Mendes, «não podemos pôr no mesmo plano uma sanção penal e uma questão de impostos».

Etiquetas: ,

#  Letra escarlate

Um dos argumentos dos apoiantes do Não para rejeitarem a proposta de alteração da lei é mais ou menos este:
A lei será inútil no combate ao aborto clandestino, pois quem tiver meios financeiros continuará a abortar em clínicas privadas [subentenda-se: clandestinas, mesmo que com todas as condições] e não nos hospitais públicos, para garantirem o sigilo.

Ora, daqui — mesmo admitindo que o cenário é válido — não se pode concluir da inutilidade da nova (e melhorada) legislação. É que o objectivo da alteração à lei não é criar uma Base de Dados Nacional das Mulheres “Abortistas”, muito menos dar-nos «ao menos» o prazerzinho mórbido de vê-las passar a humilhação da exposição pública do seu “pecado”, qual versão moderna da Letra Escarlate. (Digo que não é objectivo da lei — não que não é derradeira esperança dos apoiantes do Não, vença o Sim.)

Os objectivos primordiais da lei são dois:
  1. despenalizar aquilo que a esmagadora maioria considera, de facto, que não é crime;
  2. acabar com o aborto sem condições.

O primeiro objectivo (o mais importante dos dois, até porque sem ele não se atinge o segundo) é evidente: não se pode, num Estado de direito, deixar impune aquilo que a lei diz que é crime; mas não se pode, em nome da coerência, penalizar criminalmente aquilo que os valores esmagadoramente maioritários dizem não ser crime (por maioria de razão, não podemos, individualmente, defender que seja socialmente considerado crime aquilo que nós consideramos não o ser).

Quanto ao segundo objectivo, pretende-se evitar na medida do possível todos os perigos para a saúde da mulher, resultantes de abortos feitos em condições deficitárias, para que nenhuma mulher se veja obrigada a dizer: «Fiz um aborto sem quaisquer condições de higiene e segurança, porque não tive meios financeiros nem contactos para conseguir um aborto seguro» — ou pior: que já não esteja cá para o dizer.

Etiquetas: , ,

25 janeiro 2007

#  Deus e o aborto: desfazendo alguns mitos

Mas uma coisa é reconhecer à Igreja Católica o direito de, arbitrariamente, ditar as regras por que se rege o seu rebanho — outra bem diferente é fechar os olhos às incongruências que surgem quando fundamenta os seus ditames comportamentais (que quer impor mesmo àqueles que não se inscrevem entre os seus) em valores supostamente absolutos e claros. Um desses valores é a vida, em que a Igreja inclui a vida intra-uterina.
(Digo «a Igreja», porque a Lei portuguesa distingue as duas coisas: o Código Penal coloca em capítulos diferentes os «crimes contra a vida» e os «crimes contra a vida intra-uterina».)

Voltando à argumentação da Igreja Católica, a recusa do aborto fundamentar-se-ia, supostamente, na sacralidade absoluta da vida, expressa no interdito divino do Decálogo («Não matarás», Êxodo 20:13) e, antes disso, no significativo episódio de Caim, o fratricida a quem Deus apesar de tudo protege (Génesis 4:14–15), não deixando que o façam pagar pelo seu crime com a morte.
(Estas passagens servem também para argumentar contra a existência da pena de morte — pena a que eu me oponho a 100%, em todo e qualquer caso, mas que, estranhamente, é admitida em determinadas circunstâncias pela Igreja Católica.)

Mas convém desmontar tais interpretações, porque:
  1. nem para Deus (segundo a Bíblia) a vida é um valor absoluto;
  2. nem o feto é equiparado a um ser humano;
  3. nem, consequência do anterior, o aborto é equiparado ao homicídio.

Vejamos:

1. Para Deus (segundo a Bíblia) a vida não é um valor absoluto.
Vou passar este argumento sem mais delongas, pois é lateral à nossa questão. As provas desta minha afirmação encontram-se por toda a Bíblia (com muita morte caucionada por Deus), e de forma particularmente clara nos capítulos 21 e 22 do Êxodo.

2. Para Deus (segundo a Bíblia) o feto não é equiparável a um ser humano.
3. Para Deus (segundo a Bíblia) o aborto não é equiparável ao homicídio.
A prova de prova de 2 obtém-se da prova de 3: ao não prescrever para o aborto a mesma pena que para o homicídio, conclui-se que Deus não equipara o feto a um ser humano, sendo muito menos grave abortar do que matar alguém. E é exactamente o que acontece em Êxodo 21:22:
«Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes;»
Ou seja, enquanto o homicídio (Êxodo 21:12) e muitos outros crimes são punidos com a pena de morte, o aborto é um mero objecto de sanção pecuniária: quem provoca o aborto numa mulher (sem ser a pedido dela) deve indemnizar a família lesada. O aborto (uma vez mais, provocado por terceiros sem ser a pedido da grávida) só passa a ser crime se puser em perigo a vida da mulher, conforme se pode deduzir do versículo 23 do mesmo capítulo:
«mas se resultar dano, então darás vida por vida,»
Conclusão: o que é crime é o dano provocado à mulher, não ao feto.


E o que diz Deus quanto ao aborto feito a pedido da mulher? Nada, pelo menos a julgar pela Bíblia.
A palavra «aborto» (ou melhor, alguma forma do verbo «abortar» ou equivalente) só aparece na Bíblia por duas (ou talvez três) vezes: no versículo já citado; no livro de Oseias (9:14), em que o profeta pede a Deus que castigue o Povo Eleito (tornado iníquo) com «um útero que aborte e seios ressequidos»; e talvez no Salmo 29, versículo 9, em que a temerosa voz de Deus é apresentada como «fazendo as corças dar à luz» [subentende-se que antes do tempo, provocando-lhes o aborto].

Ou seja, para além de Deus apenas prescrever penas para o aborto provocado por terceiros contra a vontade da mulher (à semelhança do n.º 1 do Artigo 140.º do Código Penal português, mas sendo Deus mais brando), a Bíblia só volta a falar no assunto em sentido figurado (como sinal da ira ou do poder divino). E mais nada. Nenhuma criminalização da mulher que decide abortar.
Por isso, quem se opõe às alterações aos números 2 e 3 do Artigo 140.º do Código Penal (que tratam das penas de prisão para o aborto com consentimento da mulher) — e é disso que o Referendo trata — tem de procurar outro sítio para sustentar a sua posição. No registo da sua palavra que Deus nos deixou nada consta.

Etiquetas: , , , ,

#  Fé e aborto

Já se disse várias vezes (de ambos os lados da questão) que o Referendo ao aborto não é uma questão religiosa, mas é inegável que entre os crentes o factor religioso pesa.

Ao contrário do que acontece com alguns dos meus “correligionários” do campo do Sim, não me choca que a Igreja Católica (ou algum dos seus prelados) ameace com o estigma da excomunhão aqueles que praticarem aborto. As congregações religiosas são “clubes” onde, se a maior parte não entra por sua escolha — ainda não tinha idade para tal —, pelo menos permanece lá de livre vontade (quer dizer, a “livre vontade” é induzida à custa de muita pressão social à mistura, mas pelo menos já não existe uma imposição legal nesse sentido). Assim sendo, como “clube” que é, a Igreja Católica tem o direito de impor as regras que muito bem entender (dentro da legalidade do Estado) para que os membros sejam aceites como tal. E recusar a comunhão ou condenar ao anátema não me parece ferir os direitos constitucionais dos cidadãos que, cumulativamente, são também católicos.

Etiquetas: , , ,

#  Bin Laden agradece

Leio no site do movimento “Vida, Sempre!” o seguinte argumento de «gente de peso»:
«Um país que aceita o aborto não está a ensinar os seus cidadãos a amar, mas a usar a violência para obterem o que querem. É por isso que o maior destruidor do amor e da paz é o aborto
(Teresa de Calcutá)

Quanto à primeira parte (que não destaquei), digo apenas que não me parece que entre as “obrigações” de um «país» esteja a de «ensinar os seus cidadãos a amar»... mas adiante.
Quanto à parte destacada: tais extremos retóricos («o maior destruidor»!) trazem-me à lembrança declarações mais recentes:
O Papa Bento XVI comparou hoje [01/01/2007] o aborto e as pesquisas em embriões ao terrorismo. Na homilia do Dia Mundial da Paz, o líder da Igreja Católica considerou que estas práticas constituem “um atentado contra a paz”.

Bin Laden y sus muchachos agradecem — raramente pessoas de tanto «peso» caucionaram (por banalizarem) a este ponto as suas acções criminosas.

Etiquetas: , , , ,

#  E eu sei-o, porque o dedo está na extremidade do meu braço...

Tem a palavra o Sr. Bispo de Viseu:
«A mulher é a última, é a vítima de toda a situação do aborto. Fica na solidão, no abandono, fica no esquecimento, numa sociedade que apenas aponta o dedo

Etiquetas: , ,

#  Ou seja, ser mulher não deveria ser crime...

O Bispo de Viseu esclareceu que votaria “sim” no referendo de 11 de Fevereiro caso a questão posta a votação falasse exclusivamente na «despenalização da mulher».

Etiquetas: ,

#  “Logicamente, sim”

É só para dar o devido destaque ao blogue de Tiago Mendes“Logicamente, sim” —, o autor a que me referi no post anterior. O blogue é todo ele indispensável, mas permito-me destacar o work in progress (sim, porque o raw material é inesgotável) subordinado ao tema “Falácias do Não”: parte 1, parte 2, parte 3.

Etiquetas: ,

24 janeiro 2007

#  Combater a abstenção

Em artigo de opinião publicado no Diário Económico, Tiago Mendes expõe 7 boas razões para votar Sim. Destaco as três primeiras:
1. Marques Mendes diz que o aborto é uma questão de consciência — todavia, vota não. Como é que se pode concordar com a manutenção de uma lei que pune uma mulher que aborte, com uma pena de até 3 anos de prisão, defendendo ao mesmo tempo ser o aborto uma questão de consciência?

2. Quem acha que o Estado não tem nada que ver com este assunto só pode, em coerência, votar sim, porque só uma alteração da actual lei permite atingir isso. [...]

3. O mesmo se aplica aos que “embirram” com o referendo e tencionam abster-se, por não reconhecerem autoridade ao Estado neste assunto. [...]

Estes três argumentos deixam bem claro um problema: o principal combate de todos nós que somos pela descriminalização do aborto deve ser o combate à abstenção, pois ela penaliza mais o campo do Sim do que o do Não. Os dias imediatamente seguintes ao Referendo de 1998 mostraram exactamente isso: sondagens ou inquéritos mais ou menos informais revelaram que muitos eleitores (particularmente homens) não foram votar porque «isso [o aborto] é com as mulheres». O nosso esforço deve centrar-se em mostrar a essas pessoas que, se pensam assim, devem votar Sim, pois é esse o caminho para que a lei diga isso mesmo — que o aborto, a decisão de o fazer ou não, «é com a mulher».

Etiquetas: ,

#  Salada de agrião: “Assim, Não”

Marcelo Rebelo de Sousa explica por que «Assim, Não»Nunca gostei de salada. Quando era miúdo fazia finca-pé na minha recusa de tal acompanhamento alimentício.
A certa altura, porém, e num acto de “diplomacia manhosa” admirável (para uma criança), mudei de táctica: passei a contemporizar com os meus pais nos seus incentivos à deglutição de saladas. Simplesmente... hélas!... a salada que me serviam nunca era a salada «aceitável». Se me apresentavam salada de tomate, desabafava: «Se fosse de alface!...»; quando sobre a mesa estava a de alface, suspirava: «Uma salada de tomate é que era, agora assim...»; e quando havia a possibilidade de optar entre as duas (os meus pais por vezes esforçavam-se numa tentativa de me cortarem a rota de fuga), pedia asilo político ao agrião: «Eu de tomate e alface não gosto, já o agrião...» E assim desenvolvi um afecto especial por esta planta herbácea da família das crucíferas, que tinha um único mérito: raramente aparecia lá por casa.
(Adoptei técnica semelhante com outra das minhas fobias infantis, o queijo: tornei-me grande fã da extinta marca Queijinhos Zeca, precisamente quando a dita desapareceu do mercado... O que eu suspirei por um Queijinho Zeca!)


Esta manhosa “fuga com o cu à seringa”, que faz sorrir quando detectada numa criança, não deixa de ser usada por adultos, e adultos com responsabilidades intelectuais e profissionais. Assim de repente, ocorre-me o nome do Professor (e jurista) Marcelo Rebelo de Sousa (MRS).

Diz Marcelo Rebelo de Sousa (e muitos outros com ele) que, se a pergunta fosse outra, até apoiaria a mudança da lei. Mas “Assim, Não”. E então — coisa inaceitável num constitucionalista e Professor de Direito —, defende que a lei fique igual, mas não seja aplicada. (Nil nove sub sole.)
O argumento principal de MRS é que a proposta de alteração da lei não prevê apenas a descriminalização do aborto, mas uma verdadeira «liberalização» deste (a pergunta tal como está «é uma pergunta mentirosa», nas palavras do Professor). Ora, isso é falso. Recordo que a pergunta a referendar é:
Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Onde está a tão propalada «liberalização»? O que vemos é uma proposta em que se impõem regras claras (e bem restritas): um limite temporal apertado (10 semanas, contra 12 ou mais na maior parte dos países) e não só o cumprimento das condições técnicas para a realização do aborto em segurança («estabelecimento de saúde»), mas também condições administrativas («legalmente autorizado», através de algo como um alvará, presume-se).
Ou seja, o «aborto de vão de escada» continuará ilegal. Mesmo o aborto realizado por um médico com a devida preparação técnica e dotado de todas as condições de equipamento e higiene (numa clínica, por exemplo) será ilegal se a clínica onde a intervenção for realizada não estiver especificamente autorizada para o efeito.

Não haja dúvidas: não se está a «liberalizar» nada — está-se, isso sim, a pôr ordem na casa, a impor regras restritas e claras, a garantir a saúde da mulher, a combater a lei da selva em que vivemos. Exactamente aquilo que um Estado se demite de fazer quando «liberaliza» algo.

Etiquetas: ,

#  És «a favor da vida»?

Os movimentos apoiantes da criminalização do aborto (vulgo, «do Não») gostam de se apelidar de «movimentos a favor da vida, contra a morte». Falam como se alguém fosse abstracta, genérica e ontologicamente, «contra a vida».

(Parênteses: Admito entrar agora na especulação, mas não creio que mesmo os suicidas sejam «contra a vida» ou «a favor da morte», tout court. A sua decisão é pessoalíssima: terminar com a sua vida — não pretendem apontar a receita universal, urbi et orbi, muito menos impô-la aos outros.)

Na formulação globalizante (e, paradoxalmente, redutora) dos defensores do Não, ser «a favor da vida» tem tanto sentido como ser «a favor da morte»: ambas as coisas nada querem dizer. São expressões vazias, falaciosas, artifícios de retórica baixa. O seu uso recorrente por parte do campo do Não tem como único intuito atrair-nos para uma armadilha: o falso dilema entre a recta «defesa da vida» e a desviante apologia de uma «cultura de morte». Perante essas duas alternativas, quem terá coragem de não apoiar a primeira?
A questão é que a questão não é essa. À sua maneira, ambos os lados defendem a vida. A questão é que um lado põe os direitos de um projecto de ser humano, de um ser humano em potência (o feto) à frente dos direitos de um ser humano de facto (a mulher) — enquanto do outro se acha que, a ter de decidir entre uns e outros, prevalecem os direitos da ser humano de facto. Por mim, não tenho dúvidas em apoiar estes últimos.



Já agora, e socorrendo-me do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa:
vida [vídɐ]. s. f. (Do lat. vita). 1. Conjunto de fenómenos comuns aos animais e vegetais que contribuem para o seu desenvolvimento e conservação, constituindo o seu modo de actividade desde o nascimento até à morte. 2. Acção de existir, de viver. 3. Existência humana considerada em função do seu período de duração, desde o nascimento até à morte. [...]

Etiquetas: ,

#  Convergências

Há quem diga que o aborto é uma «questão fracturante». Sê-lo-á. Mas é também (e isso é menos lembrado) uma «questão unificante»: consegue unir sob o mesmo tecto o Daniel Oliveira e a Helena Matos. E ainda bem.

Etiquetas: ,

23 janeiro 2007

#  Faça o seu donativo aos Movimentos pelo Sim

Médicos pela Escolha:
NIB: 0035 0260 0000 6610 630 60
(Conta CGD: 0260 006610 630)

Jovens pelo SIM:
NIB: 0035 0100 0003 0154 730 31
(Conta CGD: 0100 030154 730)

Importante: os donativos têm de ser feitos em nome individual (como cidadão) e não em nome colectivo (associações, empresas, etc.) nem anonimamente.
Em caso de dúvida, siga os links e contacte directamente os Movimentos indicados.

Etiquetas: ,

#  Aconselhar é pouco. Por que não, em cada aborto, um plenário prévio (de 10.000.000–1) com poder vinculativo?...

Segundo o PortugalDiário:
A deputada socialista Maria de Belém Roseira comprometeu-se hoje a «bater-se» pela consagração na lei de um «período de aconselhamento obrigatório» às mulheres que queiram abortar, para que sejam aconselhadas sobre as alternativas à interrupção da gravidez, noticia a Lusa.
[...]
Esta ideia foi também defendida pelo obstreta do hospital de Santa Maria Miguel Oliveira da Silva, defensor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
[...]
Contudo, junto dos defensores do «não» a ideia não foi bem acolhida, com a psiquiatra Margarida Neto a considerar «pouco» a consagração de um período de aconselhamento.

A posição de Margarida Neto não é unânime entre os defensores do Não: alguns apoiam a proposta de Maria de Belém — e sugerem um período de aconselhamento não inferior a 9 meses. (Sabem como é: a burocracia...)

Etiquetas: ,

#  Magistratura e legalidade

Paulo Portas manifestou-se contra a participação de Maria José Morgado numa iniciativa do grupo parlamentar do PS a favor do Sim no Referendo de 11 de Fevereiro. Segundo ele, tal participação põe em causa a isenção dos magistrados:
De manhã, o magistrado é magistrado, aplica a lei e pratica a legalidade. À tarde, deixa de ser magistrado, passa a ser cidadão contra a lei e a legalidade.

Paulo Portas está errado: o que põe em perigo a legalidade não é a defesa da alteração de uma lei (as alterações às leis fazem parte da dinâmica do Estado de Direito).
O que realmente põe em perigo a legalidade e instala a arbitrariedade é defender que uma lei é boa porque não é aplicada.

Etiquetas: ,

#  A Lei é injusta — há que mudar a Lei

Quer mudar esta lei? Sim no referendo.

Fonte: Blogue Sim no Referendo


Vota SIM para mudar a lei. Fim da Perseguição às Mulheres.

Fonte: Bloco de Esquerda


Por uma lei responsável. O aborto não se resolve com prisão. Vota SIM à despenalização!

Fonte: Movimento Jovens pelo SIM

Etiquetas: ,

#  As falácias do “Teste de gravidez”

(Agora que o debate sobre o Referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez/Aborto realmente começou, recupero aqui um post de Dezembro.)


Sendo a Internet um veículo privilegiado para a transmissão de inanidades («reenvia a quem conheceres»...), chegou até mim um e-mail de assunto «TESTE DE GRAVIDEZ», o qual constava, para além da recomendação «Vale a pena pensar nisto», de uma apresentação em Powerpoint:






A dita mensagem vinha assinada por alguém cujo endereço de e-mail indicava estar ligada a uma universidade portuguesa: uma breve pesquisa e pude constatar estar perante uma Professora Catedrática na área de Educação e Psicologia.

Este último facto é grave, pois embora a autoria do Powerpoint não fosse da tal Professora (pelo menos um dos slides denunciava a sua origem ou tradução brasileira), a “académica” em causa contribuiu para a sua divulgação, donde se depreende que subscreve o seu conteúdo. Ora, sendo a dita apresentação Powerpoint uma sucessão de falácias (condimentadas aqui e ali com uma pitada de ignorância), a sua subscrição por parte de uma Prof.ª Catedrática é triste, grave — e sintomática. No alto da cátedra onde se encontra, a Sr.ª Prof.ª não deveria contribuir para a propagação da falácia e da ignorância; esperemos que tal efeito daninho se limite às áreas que não da sua especialidade... esperemos que seja apenas (?) reflexo da suspensão do espírito crítico que tão frequentemente vem associado a temas “fracturantes”, como é o do aborto.

Logo no segundo slide pergunta-se «O que recomendarias ou pensas que se deve fazer perante os seguintes casos de gravidez?» Ora, a questão é precisamente essa, ou melhor, o contrário dessa: Não recomendaria nada. A decisão de abortar ou não é de cada grávida, que não só é quem melhor pode ajuizar da sua situação, como — e isto é o mais importante — é só a ela que a decisão diz respeito. Quanto ao «que se deve fazer», cada caso é um caso: não existe resposta enlatada, não existe solução chave-na-mão (hélas!) — o «que se deve fazer» depende, antes de mais, e acima de tudo, do que a grávida quer fazer, dos seus valores, da sua consciência, da avaliação que ela faz quanto às alternativas e suas consequências.

Quanto aos cinco casos apresentados, as falácias são evidentes. Mas antes de lá irmos, uma palavrinha relativamente às escolhas: dos cinco, dois ou três são más escolhas no que toca ao poder de convencimento, pois é muito questionável se a sua existência foi benéfica para a Humanidade... Mas adiante — vamos às falácias.

Em primeiro lugar, existe a falácia da amostra: apresentam-se “exemplos” que corroboram a “tese”, enquanto se omitem todos os que possam refutá-la. (Recordando que a “mensageira” é Catedrática, esperemos não ter sido esta a técnica usada na sua Tese de Doutoramento...) É que o pseudo-silogismo da apresentação Powerpoint tem tanta validade como estoutro:
  • A mãe de Hitler não o abortou;
  • A mãe de Estaline não o abortou;
  • A mãe de Mao Tse Tung não o abortou;
  • A mãe de Pol Pot não o abortou;
  • Estes homens foram responsáveis por guerras sangrentas, deportações e execuções sumárias, genocídio e massacres, de onde resultaram várias dezenas de milhões de inocentes mortos;
  • Conclusão: Salve milhões de vidas: Aborte ou ajude alguém a abortar! Livre-nos dos monstros que ainda não nasceram! Está na sua mão fazer deste um Mundo melhor! Muitos inocentes dependem de nós...
Ridículo, não? Abusivo, diria eu. Uma falácia grosseira. Mas é o mesmo tipo de raciocínio da apresentação Powerpoint: uma avaliação a posteriori da bondade ou não de um acontecimento particular (no caso, o nascimento de alguém em concreto), de onde se parte para uma suposta conclusão a priori relativamente a um acontecimento geral (todo e qualquer nascimento ou aborto).

Temos depois a falácia da generalização abusiva. O mundo teria sido um paraíso sinfónico se nascesse alguém da craveira de um Ludwig van Beethoven sempre que uma mulher tuberculosa com quatro filhos (o primeiro cego, o segundo surdo, o terceiro já morto e o quarto com tuberculose) ficasse grávida pela quinta vez de um homem asmático. Ou se toda a violação de menores (ou, vá lá, apenas as enquadráveis no subconjunto constituído por violador branco e violada negra de 13 anos) resultasse no nascimento de uma diva do jazz como Ethel Walters. Nesse cenário, a vacina BCG e o artigo 164.º do Código Penal Português seriam os maiores inimigos dos melómanos nacionais.
Compreenda-se: Ludwig van Beethoven e Ethel Walters são recordados e celebrados precisamente porque o surgimento de alguém com o seu talento é raro. Torná-los coroa de uma vulgaríssima moeda em cuja cara constam aspectos biográficos circunstanciais (e irrelevantes) é uma falta de respeito aos génios únicos que eles foram e, uma vez mais, é prova de ignorância e de ausência de sentido crítico. Ou de má-fé.

Já agora, não pude verificar a veracidade de todos os dados biográficos apresentados no Powerpoint em causa. Não que tal veracidade altere muito as coisas: o argumento é falacioso, mesmo se se basear em informação 100% correcta.
O que até não é o caso: pelo menos no que toca a John Wesley há inverdades — voluntárias (manipulações, mentiras) ou involuntárias (ignorância). Em primeiro lugar, dificilmente John Wesley poderá ser classificado como «um dos maiores pregadores do século XIX» — pois morreu em 1791 (séc. XVIII, portanto). Quanto à «extrema indigência» dos seus pais, «um pastor e a sua esposa [que] enfrentam problemas económicos muito fortes» («são realmente pobres»), convirá esclarecer que a sua mãe, Susanna Annesley, era filha de um médico e que Samuel Wesley (o pai) não era um «pobre pastor» de ovelhas (lá se vai o bucolismo beato e caritativo...), como se poderia ser levado a pensar, mas um Pastor da Igreja Anglicana, formado em Oxford, que em 1703 (aquando do nascimento do seu filho John) era reitor de Epworth. Para “indigente” não está mal...

Mas, como disse, estas incorrecções, mesmo se deliberadas, são coisas menores face à atitude de falácia generalizada que preside à famosa apresentação Powerpoint. Não é com os «propagandistas da morte» que as nobres almas que estão «a favor da vida» têm de se preocupar para evitar serem confundidas e enganadas — mas com os seus próprios “correligionários”, que com má-fé se aproveitam da sua ignorância e falta de espírito crítico.

Repito: sei que a apresentação Powerpoint não é da autoria da tal Professora Catedrática. Mas se um professor não deve ser um mero transmissor de conhecimentos, muito menos o deve ser de ignorâncias.

Dizia a Sr.ª Prof.ª no seu e-mail: «Vale a pena pensar nisto.»
Eu diria menos: «Vale a pena pensar (Ponto.)
Experimente, Sr.ª Prof.ª. Vai ver que não dói nada.

Etiquetas: , ,

22 janeiro 2007

#  Manter o aborto ilegal não salva vidas

No máximo, salva as aparências.

Etiquetas: ,

#  Nokiaborto?


A Principia acaba de lançar no mercado o livro ABORTO – Uma Abordagem Serena. Segundo a informação constante no site da editora:
No debate sobre o aborto, sobrecarregado de opiniões nem sempre bem fundamentadas e esclarecidas e perpassado muitas vezes de extremismo e intolerância, faz falta uma exposição clara e lúcida como esta de João César das Neves, que não deixará ninguém indiferente.

Para quem não sabe, João César das Neves é o economista que há dias comparou o aborto legal aos telemóveis (segundo ele, passará a ser moda) e que, num Prós e Contras de Abril passado, explicou o declínio da Europa como consequência do aborto e das uniões de facto...

Era mesmo deste tipo de «serena lucidez» que andávamos faltos.

Etiquetas: ,

#  Movimentos pelo SIM

19 janeiro 2007

#  Professor Karamba vs. Bifidus ActiRegularis

Acabo de descobrir que o Professor Karamba é mais eficaz do que o Bifidus ActiRegularis™, bicharoco que a Danone ensopa em iogurte e nos vende sob o nome de Activia.
O aditivo da Danone (a acreditar na amiga da mulher obstipada) é eficaz ao fim de 14 dias — já com o «poderoso médium vidente», detentor de «um “dom” [assim mesmo, com aspas] hereditário, transmitido de geração em geração há mais de mil anos», «os resultados far-se-ão sentir logo após a primeira semana». Caramba! E não tem contra-indicações: tal como o Bifidus, o «Professor» tem um «poder natural».

(Os mais reputados laboratórios comparam entretanto os poderes de Alexandra Solnado com os do L. Casei Imunitass™ existente no Actimel.)

Etiquetas:

#  Muita pica

Logotipo do PICADescobri há uns dias o PICAPrograma de Intervenção em Canal Alternativo»), uma espécie de “apropriação pirata” da frequência de transmissão da 2:, ocorrendo a diferentes horas naquele canal.

Citando a sua auto-definição:
Conceptualmente, o PICA é um programa feito por miúdos para miúdos.
Na sua essência, o PICA é um magazine cultural apresentado sob a forma de um programa de ficção.

Só “apanhei” o programa (ou só fui “apanhado” por ele) uma ou duas ocasiões, e nunca desde o princípio, mas pelo pouco que pude ver o PICA é uma lufada de ar fresco nos programas destinados ao segmento etário da adolescência: está a milhas da vacuidade supostamente de «geração rebelde» de Morangos com Açúcar ou da lobotomização por via hertziana operada pela Floribella (cujo segmento-alvo talvez nem chegue à adolescência), provando que não é preciso ceder à acefalia quando se pensa um programa «p’ò psoal jove’, ‘tás a ver?».

Desde logo, o PICA apresenta-se na forma de magazine, ainda que ficcional: os apresentadores não são eles-mesmos, mas personagens — supostamente um grupo de jovens insatisfeitos que criaram um programa pirata, apropriando-se indevidamente da antena da 2: (estação que, prometem, «irá ser conquistada e confiscada»).

Para além dos segmentos ficcionais (diálogos entre as personagens, a parte que claramente mais precisa de melhorar), o PICA consta de notícias, reportagens, “artigos” de opinião, divulgação de eventos, receitas, curiosidades... quase tudo com bastante inteligência, coisa rara na TV dos dias que correm. Só para dar dois exemplos, a “apresentação” da New Yorker (numa rubrica dedicada a revistas) revelou uma profundidade de leitura que vi escapar a alguma gente com mais responsabilidade e, no capítulo da opinião, as reflexões de uma das personagens sobre o “mecanismo” por detrás das manifestações religiosas foram de um politicamente incorrecto muito pouco politicamente correcto*...


* Parece uma verdade de La Palice, mas se pensarem bem vão ver que não é...

Etiquetas:

#  (Re)Current Mood

Cartoon de P. C. Vey / The New Yorker
Na legenda: «Sinto-me um privilegiado por viver num mundo com tanta desinformação à mão de semear.»
© P. C. Vey / The New Yorker

Etiquetas: , ,

18 janeiro 2007

#  Livremo-nos da TLEBS


Quando assinar a Petição online contra a TLEBS, não se esqueça de indicar o seu nome completo!

Etiquetas: ,

#  Vale mais ser justo que gentil

«O ex-bastonário da Ordem dos Médicos Gentil Martins defendeu ontem à noite que as mulheres reincidentes em abortos merecem ser punidas, enquanto o seu colega Cipriano Justo considerou que a despenalização acaba com a liberalização clandestina do aborto.


* Acabar, talvez não acabe — mas minorará o problema.

Etiquetas: ,

17 janeiro 2007

#  A quem interessa manter o aborto ilegal?

Se até os partidários da manutenção do aborto “a pedido” como prática ilegal se afirmam contrários à prisão das mulheres que abortam ilegalmente, esta é uma pergunta que se impõe: A quem interessa manter o aborto ilegal?

Maria José Morgado: “Há clínicas de aborto que são ‘slot machines’ de ganhar dinheiro”

Para que conste, há também clínicas onde o aborto é praticado de forma segura, digna — e a preços acessíveis (apesar da ilicitude, que naturalmente os inflaciona). E ao contrário do mito popular, não é preciso ir a Espanha. Pois não é a ganância que move muitos dos técnicos de saúde portugueses que se arriscam profissional e criminalmente numa prática proibida; a discordância com a lei e a convicção de que as mulheres merecem um bom serviço também contam.

Etiquetas: ,

#  Qual Green Card, qual quê! (13)

A New Yorker iniciou em 2005 um concurso de legendagem de cartoons: em cada número um dos cartoonistas da revista cria uma imagem (geralmente absurda) sem qualquer texto, devendo os leitores fornecer a legenda apropriada. As três melhores legendas são postas à votação e o vencedor é premiado com uma gravura do cartoon, devidamente assinada pelo artista, onde consta a sua legenda.
O senão de tudo isto é que se tem de ser residente nos EUA para poder concorrer. Não conformado com isso, apresento aqui a minha sugestão para o cartoon n.º 83:


(c) Mick Stevens / The New Yorker
«Take my word: garage sale-wise, Brobdingnag is the one place to go.»

Desenho de Mick Stevens /The New Yorker

Etiquetas: , ,

#  Não fosse faltar assunto ao Gato Fedorento...

... «Santana Lopes disponível para liderar bancada parlamentar do PSD»

Etiquetas: ,

11 janeiro 2007

#  Lógica interna

Um grupo favorável ao “Não” no referendo ao aborto do próximo mês apresentou um estudo segundo o qual 14% das mulheres que abortam sofrem de stress pós-traumático. Tal estudo — acontece sempre isto neste tipo de questões — é contestado por outros estudos sobre o mesmo assunto, mas não é isso que me traz aqui (não estou habilitado a avaliar a validade de uns e de outros, pelo que mais vale estar calado).

A primeira coisa que me ocorre é fazer uma subtracção: segundo os dados do estudo mais pessimista (e que são, como disse, contestados), 86% das mulheres que abortam não sofrem de stress pós-traumático, apesar do estigma social. (Incrível o efeito que tem olhar os números de outro ângulo, não?)

A segunda coisa é constatar esta estranha lógica interna do movimento “Não Obrigada” (et alli): defendem a criminalização do aborto voluntário — contribuindo, assim, para a estigmatização social das mulheres que abortam —, para em seguida, horrorizados, nos alertarem para os traumas de que tais mulheres (supostamente) sofrem.

Etiquetas: ,