foto: Bruno Espadana

31 março 2006

#  O benefício da dúvida... mais ou menos

Neste diferendo entre Margarida Rebelo Pinto©®™ (MRP) e João Pedro George (JPG) já escrevi anteriormente: analisando as amostras fornecidas no artigo original (e JPG fornece muitas!), tendo a concordar genericamente com ele; se não assino claramente por baixo é por três razões.

A primeira é que não li os livros de MRP, não podendo por isso ajuizar se existe deturpação por JPG eventualmente citar fora do contexto, ou até que ponto (dimensão e importância para o cerne do livro em causa) chegam as citações ou paráfrases de outros autores — o que, para mim, é crucial para decidir entre um veredicto de plágio ou de intertextualidade.
Este “benefício da dúvida”, no entanto, é mais a manifestação de uma dúvida sistemática do que verdadeira dúvida: se não conheço a obra da autora em primeira-mão, pelo que tenho lido sobre as temáticas e o estilo, existe um profundo divórcio entre o que MRP escreve e o que eu quero ler. (Apesar de muitas das críticas virem de pessoas em cujos gostos literários confio, admito, ainda assim — no capítulo das hipóteses —, serem algumas das críticas tendenciosas.) E a “dúvida” nunca será totalmente desfeita: se o JPG está disponível para perder dias a fio a ler livros só para os demolir, eu não. Posso por vezes ser “enganado” e apanhar pela frente com uma xaropada, mas a vida é demasiado curta e a minha biblioteca já suficientemente farta para desperdiçar conscientemente tempo naquilo que à partida se me afigura ser isso mesmo: um desperdício.

A segunda razão para me controlar nas loas ao trabalho de desmontagem de JPG é que desconfio (mas é mais uma sensação de pele do que uma conjectura substanciada) de que poucos escritores — se é que algum, mesmo os “considerados” pela crítica —, resistiriam incólumes a uma “autópsia” minuciosa como as que JPG costuma fazer (todos temos os nossos maneirismos, os nossos lugares-comuns).

Finalmente, porque mesmo quando concordo totalmente com as ideias do JPG tenho a lamentar-lhe um excesso de indignação e uma certa falta de ironia: é sarcástico, mas falta-lhe alguma sofisticação; acho exagerado levar tão a peito, como se uma ofensa pessoal fosse, a produção escrita alheia.

Etiquetas:

30 março 2006

#  Vamos lá a ter respeitinho pela propriedade industrial!

Rui Ângelo Araújo escreveu recentemente alguns bons posts (aqui, aqui e aqui) sobre a polémica entre João Pedro George e Margarida Rebelo Pinto©®™. Ó Rui, para evitar complicações judiciais por violação de «propriedade industrial», faz como eu: não te esqueças de apor-lhe o séquito de ©®™!

Etiquetas:

29 março 2006

#  «Era tão bom se não trocássemos nenhuma ideia sobre o assunto...»

Macaco cego, macaco surdo, macaco mudo
O seguinte texto foi lido por uma amiga minha, professora de Português, na reunião do grupo da disciplina realizada esta semana.
A professora XXXX informa que prevê que no final deste segundo período se registe um acréscimo no número de níveis inferiores a três nas turmas do oitavo ano que lecciona. Tal ocorrência deve-se ao facto de os alunos não terem acompanhado o aumento da quantidade e da complexidade dos conteúdos de Funcionamento da Língua com uma imprescindível intensificação do estudo, apesar de terem sido constantemente alertados para essa necessidade e de terem realizado fichas de avaliação suplementares. A professora constata que os alunos aderem entusiasticamente às actividades de aprendizagem dos conteúdos de Funcionamento da Língua desenvolvidas nas aulas. Porém, tratando-se de conteúdos tão exigentes do ponto de vista da memorização e da compreensão, necessitam, incontornavelmente, de aturado estudo individual com vista à cimentação dos conhecimentos e à sua passagem à memória de longo prazo. Ora, estes alunos foram educados num paradigma pedagógico-didáctico que desvaloriza, quando não proscreve explicitamente, a repetição como componente inalienável da consolidação e, portanto, da memorização. De modo que, perante conteúdos impossíveis de apreender de relance, rapidamente e sem esforço, os alunos soçobram, independentemente da entrega apaixonada do professor e do gosto e da motivação que manifestam na realização das actividades na aula. Na verdade, por não terem treinado de modo sistemático, frequente e progressivo a memorização, agora não possuem esquemas mnemónicos, nem capacidade de concentração e de esforço demorado, competências essenciais para a aprendizagem. Uma prova da veracidade deste lamentável facto é-nos dada, precisamente, pelos alunos que têm sucesso, apesar deste sistema, na prática, desvalorizador do conhecimento. Esses alunos desenvolveram esquemas de autodefesa, não desprezando a aquisição de hábitos pessoais e intransmissíveis de aprendizagem, ainda que contrários ao prazer imediato que certamente também apreciam. E assim, para passarem além do Bojador que é a Gramática, não se importam de passar além da dor.
É certamente significativo o facto de que, num grupo de mais oito pessoas presentes, apenas duas secundaram o diagnóstico e as preocupações daí decorrentes. As restantes demonstraram, pelo contrário, incómodo (se não enfado) por a questão ser sequer abordada; tal incómodo ou enfado não foi, no entanto, verbalizado, certamente devido aos reconhecidos mérito e competência da professora minha amiga, e ao ascendente daí resultante — ascendente que, para nossa desgraça, não se traduz no desejo de emulação por parte dos professores em causa, mas tão-só num estratégico silêncio.

Keep smiling and hope it will go away... It won’t — but anyway.

Etiquetas:

#  A fortaleza muralhada da Pedagogia romântica

Ainda sobre o caso Lafforgue, diz uma amiga minha: «A situação é mesmo grave, se conseguiram “sanear” um peso-pesado como o Laurent Lafforgue...»

É para que estejamos conscientes: muitos dos dogmas e práticas da Pedagogia romântica são negados pelas próprias evidências — mas isso não quer dizer que não estejam profundamente enraizados no Sistema e que não dêem luta feroz. A capacidade de sobrevivência das ervas daninhas, como é sabido, é proverbial.

Etiquetas:

#  Kunstbar, ou Curso Abreviadinho de Arte

Um colega e amigo apresenta-me a animação em Flash Kunstbar, do colectivo canadiano The Petrie Lounge, um “filme” «bastante apropriado nesta época em que Bolonha obriga à condensação dos programas. Recomenda-se o visionamento nas disciplinas que tenham história, arte e moderno/a no título».

'Kunstbar', uma animação de The Petrie Lounge
O meu colega diz ainda: «Suspeito que o filme esteja ainda de acordo com todas as teorias do esforço/aprendizagem que tão bons resultados têm dado em áreas como a Matemática e a Física. Convém é acrescentar as respectivas legendas.» Mas eu acho que não: não devemos cercear a liberdade interpretativa dos alunos — que, idealmente, construirão a sua própria, pessoalíssima, História da Arte. (Se «em última análise, o ideal seria haver uma Matemática para cada aluno»*, por maioria de razão dever-se-á garantir, quiça constitucionalmente!, tal direito em relação à Arte e respectiva História. Já basta de Ditadura dos Factos!)

* Fernando Nunes, «Vencer o insucesso», entrevista a Maria João Martins, Jornal de Letras, 4 de Setembro de 2002, suplemento JL/Educação, pp. 4–5. Citado em Nuno Crato, O ‘Eduquês’ em Discurso Directo, Gradiva, 2006, p. 60. (Fernando Nunes era à data presidente da Associação de Professores de Matemática.)

Etiquetas:

28 março 2006

#  A Crise do Islão, de Bernard Lewis

Capa de 'A Crise do Islão'Li a semana passada o mais recente livro de Bernard Lewis editado em Portugal, A Crise do Islão — Guerra Santa e Terror Ímpio (2003; Relógio d’Água, 2006). Dele, antes de mais, posso dizer que é inteiramente merecedor das palavras de Daniel Johnson (Daily Telegraph) incluídas na contracapa:

As virtudes características do autor estão todas em grande evidência: concisão, legibilidade, perspicácia irónica e uma lógica impressionante. Isto é Bernard Lewis vintage: ele melhora com a idade.

Não estando com tempo nem disposição para mais, limito-me a citar algumas passagens (os destaques a são meus).


Se dúvidas houvesse, eis por que o Islão é incompatível comigo (e vice-versa):

Se é possível falar de um clero no mundo islâmico num sentido sociológico limitado, de laicidade, porém, não é possível falar em sentido nenhum. A simples ideia de algo separado ou possível de separar da autoridade religiosa, que em linguagem cristã se exprime por termos como «leigo [melhor: laico], temporal ou secular», é totalmente estranha ao pensamento e à prática islâmicos. [...] (p. 33)

Sobre a ausência de discussão crítica no seio (autocrítica) e à volta do Islão:

[...] actualmente, não há nenhum país cristão em que os líderes religiosos possam contar com o grau de fé e de participação que continua a ser normal em terras muçulmanas. Em poucos países cristãos, ou mesmo em nenhum, os valores sagrados cristãos gozam de imunidade ao comentário ou discussão crítica que é aceite como normal até nas sociedades muçulmanas ostensivamente seculares e democráticas. Com efeito, essa imunidade privilegiada foi alargada aos países ocidentais onde existem agora comunidades muçulmanas, e onde a fé e as práticas religiosas muçulmanas gozam de um nível de imunidade à crítica que as maiorias cristãs perderam e as minorias judaicas nunca tiveram. [...] (p. 38)

Sobre o relacionamento do Islão com outras fés e culturas, e com o Ocidente em particular:

[O Islão] Ensinou homens de raças diferentes a viver em fraternidade, e pessoas de credos diferentes a viver lado a lado num clima razoável de tolerância. [...] Mas o Islão, como outras religiões, também passou por períodos em que inspirou em alguns dos seus seguidores sentimentos de ódio e de violência. Por infelicidade nossa temos de nos confrontar com o mundo muçulmanos quando ele atravessa um desses períodos, e quando a maior parte desse ódio — embora de modo nenhum todo ele — é dirigido contra nós. (p. 43)

[...] é o Islão, fundamentalista ou de qualquer outra espécie, uma ameaça para o Ocidente? [...] De acordo com uma escola de pensamento, após o colapso da União Soviética e do movimento comunista, o Islão e o fundamentalismo islâmico substituíram-nos como a principal ameaça para o Ocidente e o estilo de vida ocidental. Segundo outra escola de pensamento, os muçulmanos, incluindo os fundamentalistas radicais, são basicamente pessoas decentes, amantes da paz e piedosas, algumas das quais perderam a paciência com todas as coisas horríveis que nós, os do Ocidente, lhes fizemos. Nós decidimos vê-los como inimigos porque temos uma necessidade psicológica de um inimigo que substitua a defunta União Soviética.
Ambos os pontos de vista contêm elementos verdadeiros, e ambos estão perigosamente errados. O Islão em si mesmo não é um inimigo do Ocidente [...]. Porém, um número significativo de muçulmanos — sobretudo mas não só aqueles a quem chamamos fundamentalistas — são hostis e perigosos, não porque nós precisemos dum inimigo mas sim porque eles precisam. (pp. 44–45)

[...] Alguns deles ainda vêem o Ocidente em geral, e em particular o seu actual líder, os Estados Unidos, como o velho e irreconciliável inimigo do Islão [...]. Para estes, o único caminho é a guerra até à morte [...]. Outros há que, embora sejam muçulmanos convictos e cientes dos defeitos da sociedade ocidental moderna, [...] procuram juntar-se a nós na tentativa de alcançar um mundo mais livre e melhor. Há ainda outros que, embora considerando o Ocidente o seu inimigo derradeiro e a fonte de todos os males, todavia estão conscientes do seu poder e pretendem um alojamento temporário, para melhor se prepararem para a luta final. Temos de ser prudentes para não confundir os segundos com os terceiros. (p. 45)
(Tratar os segundos como se fossem os terceiros é injusto — e contraproducente. Mas convencermo-nos de que os terceiros são os segundos é imprudente — e o 11 de Setembro mostrou quão perigoso.)

Sobre a ambiguidade das democracias ocidentais (a situação na Argélia e outras experiências democráticas em países islâmicos):

[...] Em Janeiro de 1992, depois de um intervalo de tensão crescente, os militares cancelaram a segunda volta das eleições. Nos meses que se seguiram dissolveram a FIS [Frente Islâmica de Salvação] e instalaram um regime «secular», que na realidade era uma ditadura implacável que mereceu sinais de aprovação em Paris, Washington e outras capitais ocidentais. [...] Problemas semelhantes surgem no Egipto, no Paquistão e noutros países muçulmanos onde parecia provável que eleições genuinamente livres e justas viriam a resultar numa vitória islâmica.
Nisto, os democratas estão evidentemente em desvantagem. A sua ideologia exige que eles, mesmo quando estão no poder, concedam liberdades e direitos aos islamitas da oposição. Os islamitas, quando estão no poder, não estão sujeitos a essa obrigação. Pelo contrário, os seus princípios exigem que eles suprimam aquilo que consideram liberdades ímpias e subversivas.
Para os islamitas, a democracia, por expressar a vontade do povo, é a estrada para o poder, mas é uma estrada de sentido único, pela qual não há regresso, não há rejeição da soberania de Deus, conforme é exercida através dos Seus representantes escolhidos. A sua política eleitoral foi classificada sumariamente como: «Um homem (só os homens), um voto, uma vez».
[...] Mas isso não é razão para dar mimo a ditadores. (pp. 102–103)

Por estes e por outros momentos de rara clarividência (e preciosa informação), este pequeno livro (150 pp.) é de indispensável leitura.

Etiquetas: , ,

#  «L’Affaire Lafforgue»

Jorge Buescu escreveu na revista da Ordem dos Engenheiros um interessante artigo (disponível na publicação electrónica Crítica, dirigida por Desidério Murcho) sobre o «affaire Lafforgue», um caso (relacionado com políticas educativas) que, infelizmente, passou ao lado da Imprensa nacional. Conforme diz Buescu:

É extraordinariamente instrutivo ler o documento de Lafforgue. A sua análise, embora sobre a catástrofe que reina no sistema educativo francês, transpõe-se praticamente ipsis verbis para o caso português. Chega a ser arrepiante a forma tão literal como a sua análise se adapta, o que evidencia estar-se perante um fenómeno global e não local.
O melhor mesmo é ler o artigo de Jorge Buescu — ou, para quem dominar o francês, passar pelo site de Laurent Lafforgue —, mas ainda assim não resisto a citar três breves passagens:

De facto, “apelar aos especialistas da Educação nacional: Inspecções gerais e direcções da administração central, em particular direcção da avaliação e de prospectiva e direcção do ensino escolar” é exactamente como se formassem um “Conselho Superior para os Direitos do Homem” e se propusessem apelar aos Khmers vermelhos para constituir um grupo de especialistas para a promoção dos direitos humanos.
(Não consigo deixar de pensar nalguns documentos da responsabilidade do CNE, os nossos próprios Khmers vermelhos da educação — e tremer.)

Estas políticas foram inspiradas por uma ideologia que consiste em passar a não valorizar o conhecimento, associada ao desejo de fazer a escola desempenhar outros papéis que não a instrução e transmissão do saber, à crença em teorias pedagógicas delirantes, ao desprezo das aprendizagens fundamentais, à recusa do ensino construído, explícito e progressivo, à doutrina do aluno “no centro do sistema” que “deve construir ele próprio os seus saberes”.
(Eis uma boa altura para re-recomendar a leitura do último livro de Nuno Crato, O ‘Eduquês’ em Discurso Directo, que vejo com alguma esperança estar no top 10 de vendas das Livrarias Bertrand.)

Finalmente:

[...] este movimento de degradação educativa é muito generalizado, fazendo-se sempre em nome do “progresso” e da “modernização”.
De boas intenções...

Etiquetas:

27 março 2006

#  Ainda há esperança para Portugal!

Comparando a lista de participantes dos diferentes reality shows de “figuras públicas” da TVI (Big Brother Famosos, Quinta das Celebridades, Primeira Companhia, Circo das Celebridades) penso: afinal, o número de cromos e burgessos em Portugal é capaz de ser menor do que os mais pessimistas nos querem fazer crer.

Etiquetas:

#  Contra as “correntes” de e-mails, filtrar, filtrar!

De todos os filtros que criei para o meu e-mail, aquele que melhores serviços me tem prestado (e pelo qual mais carinho nutro) é o que envia automaticamente para o lixo qualquer mensagem cujo assunto denuncie a existência de dois ou mais reenvios (Fwd: Fwd:). A experiência mostra-me que os “reenviadores compulsivos” só divulgam irrelevâncias.

#  Qual Green Card, qual quê! (3)

The New Yorker cartoon caption contest #44 — a minha contribuição:

(c) Alex Gregory / The New Yorker
«We were better off without the French...»
ou
«I hate baby-sitting the Press...»

Desenho de Alex Gregory / The New Yorker

Etiquetas: , ,

#  “Refugiados”

Chegou hoje a Portugal um grupo de portugueses que, imigrados ilegalmente no Canadá, procuraram (sem sucesso) lá permanecer invocando o estatuto de refugiados políticos. Acho que já escrevi sobre este caso (no tempo da Periférica), mas reitero-o: espero que o Estado português não assobie para o lado como se nada fosse, mas, pelo contrário, os leve a responder em tribunal pelo crime de difamação.

É possível (provável, mesmo) que estes homens tenham sido manipulados por um advogado sem escrúpulos — mas isso não os exime das suas responsabilidades. Também não andaremos muito longe da verdade se dissermos serem eles pessoas bastante incultas e não muito inteligentes — mas não ao ponto do atraso mental, não ao ponto da inimputabilidade.

Invocarem o estatuto de refugiados políticos é, não só uma afronta a Portugal e aos dez milhões que cá vivem, mas a todos os que saíram do país admitindo a sua real condição: emigrados económicos em busca de uma vida melhor, não de liberdade. E, acima de tudo, é uma afronta aos que, num passado ainda não demasiado distante, efectivamente fugiram de Portugal como refugiados políticos.

Etiquetas:

21 março 2006

#  Não me lembra nada nem ninguém (2)

Hoje é, entre outras coisas, Dia Mundial da Poesia... e do Sono.

Etiquetas:

20 março 2006

#  Quotas: analogia falaciosa

Luís Salgado de Matos (LSM) escreve no Público de hoje sobre o estabelecimento de quotas para as listas eleitorais, a que se opõe. O autor apresenta alguns argumentos válidos (o tema está longe de ser preto-no-branco), mas não consegue resistir a uma certa falácia: estabelecer (ainda que de forma pouco clara) um paralelo entre as quotas nas listas eleitorais e as quotas no acesso ao curso de Medicina, sugeridas há uns tempos por um grupo restrito de médicos:
Como entre nós prevalece a igualdade social das mulheres, já há queixosos que querem quotas para homens. Mas são só médicos e mesmo assim poucos. Queixosas de desigualdade, há apenas as militantes dos partidos políticos. As outras, mesmo sem igualdade, julgam que conseguirão melhorar a situação pelos seus próprios meios.
A comparação das duas situações é abusiva, pois, ao contrário do que se passa na elaboração das listas eleitorais dos partidos políticos, a selecção dos futuros médicos parte de uma efectiva avaliação do seu mérito (o percurso académico), ainda que se admita ter esta avaliação um valor discutível (um bom percurso no Ensino Secundário não é garantia de sucesso no curso de Medicina — e um bom aluno de Medicina não é necessariamente o melhor dos médicos).

LSM tem, por isso, alguma razão quando afirma que «o problema é dos partidos e não da sociedade» (“alguma”, porque tratar os partidos como algo externo à sociedade é esquizofrenia social). Mas erra bastante mais no diagnóstico que se segue:
Os partidos apresentam-se neste caso como viveiros de cidadãos subprivilegiados que necessitam da força para conseguirem a igualdade que os outros portugueses alcançaram por si mesmos.
LSM olha para os partidos e choca-o um suposto proteccionismo feminino que aí vem. Estranhamente, escapa-lhe o bem mais evidente proteccionismo masculino que está cá desde sempre, e que me dá todo o direito de reescrever a frase anterior:
Os partidos apresentam-se como viveiros e coutadas de cidadãos privilegiados que conseguem manter um statu quo de desigualdade que, noutros campos e de outra forma, não alcançariam por si mesmos.
Porque, se como o próprio LSM reconhece, a realidade actual é a de que as mulheres «se afirmam em quase todos os terrenos da vida social e se tornam maioritárias em todas as profissões de prestígio — sem quotas, pelo mérito», impõe-se a pergunta: acreditará Luís Salgado de Matos que é dessa forma, «pelo mérito», que os homens se afirmam esmagadoramente na política? Se sim, gostaria de ver a sua definição de «mérito».

Etiquetas: , ,

#  As futuras Miss Universo ainda não aprenderam a mentir

Segundo um estudo do Fórum da Criança resumido no suplemento Dia D do Público de hoje, apenas 2% das crianças afirmam que ajudariam os pobres se tivessem muito dinheiro.

Dados empíricos avulsos indicam que, com a idade, a sinceridade passa-lhes.

Etiquetas:

17 março 2006

#  Esclarecimento (3)

Para os devidos efeitos, gostaria de recordar que o presente blogue se intitula “Não tenho vida para isto”, e não “Não tenho vida para aquilo”. Obrigado.

#  Aquilo

Por e-mail chega-me um recorte de imprensa cuja fonte desconheço:


O articulado suscita algumas dúvidas pragmáticas:
  1. O número e o sexo dos intervenientes são aspectos relevantes?

  2. O que será o enigmático «mão na mão»?

  3. Em que reside a (aparentemente) subtil distinção entre o abominável «mão naquilo» e o duplamente mais ofensivo «aquilo na mão»?

  4. A que se deve a omissão de tantas possibilidades combinatórias, da omnipresente «língua na língua» à injustamente desprezada «língua na mão»?
Parágrafo único — Onde param as fotografias? Nalgum envelope numerado?

Resta, em nome da moral e dos bons costumes, o consolo de as frondosas vegetações escassearem cada vez mais (bem como os guardas florestais).

Obrigado, Pedro!

Etiquetas:

#  Maio de 68, versão 2.0?

Há uns anos, quando me iniciei nestas coisas da web, dediquei uma secção do meu primeiro site ao Maio de 68 (slogans, cartazes, cartoons, murais, etc.). Um conhecido meu, polaco, tentou na altura fazer-me ver o fenómeno segundo a perspectiva (bem menos favorável) dos que tinham tido o azar de nascer do lado errado da Cortina de Ferro. Sem sucesso: apesar de não me identificar de todo com a ideologia comunista, eu era no fundo um romântico e encolhi os ombros, dizendo que o Maio de 68 era outra coisa, e que ele (o polaco que me falava) simplesmente não conseguia perceber a poesia do movimento soixante-huitard.

Hoje, vendo as imagens e as notícias dos confrontos em Paris, penso de forma diversa. Talvez a razão seja eu ter entretanto mudado (mudei certamente — gosto de pensar que evoluí), ou o mundo ter mudado. Ou quiçá a culpa seja de um défice poético no movimento actual. Mas, acima de tudo, penso que, face a 1968, a revolta estudantil dos dias que correm perde inapelavelmente num aspecto: falta-lhe a beleza concedida pelo verniz de se situar convenientemente num passado que não vivi.

Para o Wladimir.

Etiquetas:

#  As mulas empacadas nos seus quintais

Segundo o Público, um relatório preliminar do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado prevê (supostamente) o desaparecimento das Regiões de Turismo (RT). O artigo não é claro se por «desaparecimento» se entende a redução do número de RT’s (actualmente são 19, que nem sequer cobrem todo o território nacional), criando RT’s maiores, ou se efectivamente se pretende acabar de todo com o conceito de Região de Turismo. Acabar pura e simplesmente com as RT’s é absurdo; já a ideia da redução não é nova e, de resto, tem muita razão de ser.

Dando o exemplo de Trás-os-Montes e Alto Douro, os concelhos da região estão divididos por quatro regiões de turismo (Alto Tâmega e Barroso, Nordeste Transmontano, Serra do Marão e Douro Sul), com alguns concelhos (p. ex., Peso da Régua e Vila Nova de Foz Côa) fora de qualquer RT. E mesmo concentrando-nos apenas na região do Douro Vinhateiro (que, como Património da Humanidade, deveria ser um destino turístico em si mesmo), o cenário não ganha mais nexo: de quatro passamos para três RT’s, mais alguns concelhos “independentes”. Este caos, esta “lógica de bairro”, tem custos elevados: fragmentação da oferta (não se consegue criar uma “imagem de marca”), descoordenação e dispersão das campanhas promocionais (não há sinergias — há é demasiado ruído cacafónico, ou demasiado silêncio, por falta de uma voz que se faça de facto ouvir), desperdício de meios humanos e financeiros (multiplicação das estruturas), diminuição da capacidade de candidatura a projectos de alguma envergadura.

Foram estes e outros os problemas apontados há uns anos por um estudo (em que um colega meu participou), que propunha nas conclusões a criação de uma Região de Turismo única para toda a região de Trás-os-Montes e Alto Douro (com duas sub-regiões). A ideia foi liminarmente recusada. Porquê? No fundo, simplesmente porque uma região quer dizer um presidente, enquanto quatro regiões quer dizer quatro presidentes, mais respectivos séquitos. A lógica do tacho, do quintalzinho particular, derrotou a lógica da operacionalidade e do bem comum.

Agora que um estudo encomendado pelo Governo parece indicar a redução dos feudos turísticos, que argumentos de peso apresentam as RT’s para a manutenção do statu quo? Nenhum, excepto a arrogância (ou a falta de vergonha na cara) do imobilismo: segundo o vice-presidente na Associação Nacional das Regiões de Turismo, «Não aceitamos lições de ninguém» é a palavra de ordem. Sei que há quem veja na luta contra a extinção do gado asinino um factor de desenvolvimento regional e turístico — mas a defesa de tal espécie não tem obrigatoriamente de passar pela sua eleição para as Regiões de Turismo.

Etiquetas:

15 março 2006

#  Compensação — ou válvula de escape?

Gostaria de recuperar aqui uma breve citação do artigo de David Justino na Pontos nos ii:
[...] a televisão, a consola de jogos, a Internet, a obsessão consumista, quantas vezes utilizados como forma de compensação dessa ausência afectiva dos pais.
Embora concorde com a maior parte do texto do ex-ministro da Educação, penso que neste caso em concreto peca por demasia de bondade ou optimismo, dando dos pais uma imagem mais positiva (ainda assim) do que eles no geral merecem. Para David Justino, as «vontadinhas todas» que os pais fazem aos filhos são o reflexo de um certo sentimento de culpa pela ausência afectiva, decorrente da vida moderna: não te dou a atenção que precisas, mal toma lá a consola. Ora, se isto também é verdade, não é a única verdade: não raras vezes, o «apetrechamento» dos filhos serve, não para compensar, mas para possibilitar a ausência afectiva. Não vá a miúda andar à nossa volta a toda a hora, compra-se uma televisão só para ela; antes que o puto chateie, o melhor é arranjar-lhe uma ligação ADSL... São o equivalente doméstico das “countermeasures” navais: dispositivos (espécie de iscos, “decoys”) com os quais se tenta desviar do nosso submarino os torpedos inimigos, para que expludam bem longe.

Ah! O sossego que é «despachar» a prole para o quarto...

Etiquetas:

#  Pontos nos ii (2)

Definitivamente, posso sem receios afirmar que a Pontos nos ii é uma revista que merece ser lida e uma mais-valia no panorama da Educação em Portugal. Ainda não li tudo, mas parece-me claro que a revista não peca pelo nefelibatismo pseudopedagógico prevalente em alguns suplementos de Educação (JL/Educação) e outras publicações que se fazem por cá (CNE, APM).

A ver se é desta que se começa a tirar as medidas ao caixão da pedagogia romântica...

Etiquetas:

14 março 2006

#  O cabide

Ao longo da revista Pontos nos ii deparo-me (et pour cause) com diversas referências à demissão de responsabilidade por parte dos pais, que na prática se recusam a ser «Encarregados de Educação».

Santana Castilho (já citado):
Os pais deixaram de ser os aliados primeiros do professor na modelação dos filhos. Hoje, delegam neles todas as responsabilidades, mesmo as indelegáveis. E depois acusam e exigem.
David Justino (artigo «Amor e disciplina»):
Mas há também uma reconfiguração dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao pai e à mãe: eles estão afectivamente mais ausentes. O tempo da vida familiar alterou-se profundamente.
[...] a televisão, a consola de jogos, a Internet, a obsessão consumista, quantas vezes utilizados como forma de compensação dessa ausência afectiva dos pais.
Um professor, testemunhando na reportagem «A (in)explicável violência...»:
A escola é um armazém onde os pais entregam os meninos e não se preocupam mais. [...] só quando se fala em suspensão é que os pais temem, porque o filho não pode ser enviado para o “depósito”.
Reportagem «Filme de terror»:
A crítica final [da professora] vai para o Estado, que desresponsabiliza alunos e pais, fazendo das escolas «contentores de crianças» [...]
Em especial as imagens presentes nas duas últimas citações trouxeram-me à memória uma ideia que me ocorreu há muitos anos atrás. Uma amiga minha, que na altura estudava para ser educadora de infância, pediu-me para responder a um questionário para um trabalho integrado no seu estágio. O tema central era algo como «O que é e para que serve um Jardim-de-Infância?» Na altura, um pouco em jeito de brincadeira, respondi oralmente (mas não registei no papel) que era «uma espécie de cabide onde os pais penduram os filhos enquanto vão trabalhar» — e sugeri mesmo a criação de um Jardim-de-Infância ou ATL precisamente chamado «O Cabide».

Era então eu bem mais inocente, como se vê: não notava que o cabide se estendia por todo o sistema educativo.

Etiquetas:

#  Pontos nos ii (notas marginais)

1. Ao escrever o post anterior descobri que o meu processador de texto desconhecia a palavra «facilitismo», pelo que tive de “ensinar-lha”. No mundo real é ao contrário: o facilitismo conhece-se não se ensinando, não se exigindo, «deixando andar».

2. Relativamente à «apologia do prazer imediato», valerá talvez uma ressalva: o meu reparo de que as culpas se repartem entre a «indústria da comunicação e do espectáculo» (apontada a dedo por Santana Castilho) e os «teóricos da pedagogia» (acrescentados por mim) é algo descabida, no mínimo é picuinhas. Em abono da verdade, um simples ajuste na terminologia do director da Pontos nos ii torna-a mais certeira e económica: refiramo-nos a uns e a outros como «teóricos e práticos da comunicação e do espectáculo».

Etiquetas:

#  Pontos nos ii (1)

A edição do Público de hoje inclui o n.º 3 da Pontos nos ii («Revista Mensal de Política Educativa»). A impressão resultante de um folhear rápido e da leitura de parágrafos dispersos é de que esta é uma publicação que merece ser lida com atenção. Razão por que será natural que nos próximos dias escreva aqui coisas suscitadas pela sua leitura, ou que cite um ou outro texto.

Para já, umas breves passagens do editorial de Santana Castilho («Venham os Bárbaros!»), com destaques adicionais da minha responsabilidade:
Nesta edição da Pontos nos ii entrámos no «pavilhão» da Escola, onde o esforço deu lugar ao facilitismo, o trabalho à preguiça, o rigor científico ao totalitarismo pedagógico, a disciplina à indisciplina. [...]
[...] A escola não se realiza sem sacrifícios, disciplina e trabalho. Mas, fora da escola, a indústria da comunicação e do espectáculo faz a apologia do prazer imediato, do consumo supérfluo, da extravagância e do efémero. [...] Os pais deixaram de ser os aliados primeiros do professor na modelação dos filhos. Hoje, delegam neles todas as responsabilidades, mesmo as indelegáveis. E depois acusam e exigem. [...]
Concordo no essencial com Santana Castilho, mas não gostaria de deixar passar em claro uma omissão do director da Pontos nos ii: a «apologia do prazer imediato» no ensino não é exclusiva da «indústria da comunicação e do espectáculo». Fosse assim, e estaríamos nós bem melhor do que estamos. A ideia do prazer constante ao longo de todo o processo de aprendizagem — e a ocultação do facto (ou a recusa da ideia) de que o processo é frequentemente difícil ou enfadonho, requerendo esforço e perseverança, residindo o prazer muitas vezes apenas num resultado de sucesso — é uma bandeira também de certos teóricos da pedagogia, que emprestam às práticas laxistas um ilusório verniz de cientificidade. Tal verniz, como é patente no caso português (mas há muito quem não queira ver), é de fraca qualidade e estala facilmente.

Etiquetas:

13 março 2006

#  O óbvio (1)

Nem a propósito do que aqui deixei escrito sobre o des/aproveitamento masculino/feminino da educação: no suplemento Dia D do Público de hoje Kjell Nordström, um dos gurus da gestão actual, prevê que
dentro de 25 anos [...] haverá poucos homens suficientemente bons para ocupar lugares de grande responsabilidade.
Infelizmente, isso não quer dizer que não os ocupem, acrescentaria eu.

Etiquetas: , , ,

#  O óbvio (2)

Diz ainda Kjell Nordström:
Os problemas de violência na Europa são todos causados por homens, sem instrução e desempregados, que criam mais oportunidades às mulheres.
Pergunto eu: o que faz de nós gurus — a capacidade para constatar o óbvio, ou a coragem de afirmá-lo?

Já agora, proponho uma reformulação ao excerto anterior, por forma a torná-lo aplicável ao resto do mundo, particularmente às sociedades de tipo não Ocidental:
Os problemas de violência são todos causados por homens, sem instrução e desempregados, o que nem por isso cria mais oportunidades às mulheres.

Etiquetas: , , ,

#  A retaliação

Se ele não escrevesse num blogue da concorrência, diria aqui que J. Rentes de Carvalho tem desde há uns dias o seu próprio site. Assim não digo.

Etiquetas: ,

#  O horror, o horror...

Incrédulo, descubro na blogosfera que um dos meus melhores amigos é a Clara Ferreira Alves.

Então, a súbita tomada de consciência: E se...?

Horrorizado pela perspectiva, deito mão à carteira, buscando o Bilhete de Identidade com mãos trémulas. A confirmação cai como um balde de água fria: eu sou o Pedro Santana Lopes!

Etiquetas: ,

10 março 2006

#  Paridade vs. Meritocracia?

Manuel Carvalho escreve hoje num editorial sobre o projecto de lei da paridade nas listas eleitorais:

Muda a forma, mas, para as mulheres, a substância pouco se altera. Vale mais arriscar mudar do que deixar tudo na mesma, mas o projecto do PS oferece um enorme perigo para as mulheres que, em tese, pretende defender: o perigo de trocar a qualidade pela quantidade.

Concordaria com as palavras do director-adjunto do Público se a redacção fosse: «o perigo de insinuações de troca da qualidade pela quantidade» — porque, se há coisa de que não corremos risco em política, é de ver a qualidade a ser trocada pela quantidade; quanto muito, poderemos assistir à troca de uma quantidade por outra quantidade (mas isso, mais do que um “perigo”, será uma lufada de ar fresco: ao menos que mudem as moscas).

De facto, se há critério que pouco conta para a elaboração das listas eleitorais é o mérito; pelo menos o mérito-mérito, o mérito mesmo — não o mérito-amiguismo, o mérito-compadrio, o mérito-uma-mão-lava-a-outra, o mérito-jogo-de-cintura, o mérito-marketing, que destas estirpes de “mérito” temos realmente muitos espécimes em política, particularmente na autárquica.

Por isso, é errado (perverso, optimista ou desinformado, conforme os casos) afirmar que a introdução de quotas mínimas para cada sexo (eufemismo de para as mulheres) irá desvirtuar a democracia, forçando-nos a preterir a pessoa certa pela pessoa do sexo certo. As quotas apenas obrigam os políticos a olhar para os 51,84% que habitualmente descuram. Os tempos mais recentes provam que, quando a selecção é feita de forma isenta e com base no mérito objectivamente demonstrado (como seja o caso do ingresso no Ensino Superior), as mulheres não só conquistam o seu lugar, como efectivamente ganham um peso superior ao meramente demográfico. Quando isso não acontece, é ou porque elas não estão interessadas no lugar (como seja o caso dos cursos de Engenharia, se bem que cada vez menos), ou, mais habitualmente, porque não existe uma “selecção natural” (chamemos-lhe assim), mas sim uma “nomeação” com base em critérios muito subjectivos de “mérito”. Significa que Darwin foi vencido pelos Filhos de Adão.

Etiquetas: , ,

09 março 2006

#  Meta-Bolsa

A Bolsa de Nova Iorque (New York Stock Exchange, ou NYSE) é, desde ontem, uma empresa cotada na Bolsa de Nova Iorque.

08 março 2006

#  Paridade (2)

O Público apresenta hoje alguns «números e factos no feminino». Os dados são fornecidos quase a seco, sem análise — não sei se por acharem que as conclusões saltam à vista. Assim não sendo, vejamos:

Se por um lado se afirma que homens e mulheres «contribuem por igual para o orçamento familiar» (a maneira como os dados são concretizados é algo confusa), por outro é dito que elas «em casa trabalham quase quatro vezes mais» do que eles (semanalmente, 26 horas contra 7 horas gastas com a «lida da casa»). Ora este é um dos problemas: a não valorização do trabalho doméstico. Como se pode dizer que duas pessoas contribuem de igual forma para o orçamento familiar, quando uma presta o quádruplo dos “serviços” ao agregado familiar — serviços que, se não fossem prestados à borla por um dos membros da família, teriam de ser pagos a terceiros (logo, afectando negativamente o orçamento familiar)?
Esta mentalidade de menorização do trabalho doméstico foi inclusivamente interiorizada pelas próprias mulheres: quantas, que exercem exclusivamente a actividade de domésticas (donas-de-casa), não se referem a si mesmas dizendo que «não trabalham»?! E é também esta mentalidade (delas e deles) que justifica, em parte, o facto de 61,9% das mulheres portuguesas exercerem uma profissão remunerada, contra 56% de média da UE; não se veja aqui um sinal de maior paridade portuguesa — simplesmente, para além dos baixos salários dos homens (que é preciso complementar), há o estigma recente que recai sobre a mulher que «não trabalha».

Outro dado interessante é o facto de 56,6% dos estudantes do Ensino Superior em Portugal serem mulheres (54,6% na UE); a percentagem da população feminina nacional é, recorde-se, 51,84%. Em poucas décadas — assim que lhes deixou de ser barrado o caminho para a educação — as mulheres passaram de «seres pouco dados às coisas do intelecto» a maioria expressiva nas universidades (há até quem já grite ó da guarda).
Esta tendência reforça-se quando se analisa a percentagem de diplomas de bacharelato e licenciatura que lhes são atribuídos (64,1%) ou mesmo de mestrado (56,6%). Ou seja: as mulheres não só frequentam mais a universidade do que os homens, como efectivamente vão lá fazer alguma coisa. Isto, recorde-se, quando as responsabilidades domésticas recaem esmagadoramente sobre as mulheres: elas cuidam da casa e, enquanto isso, licenciam-se também; eles vegetam por aí, uma geração perdida de machos falhados*.
O cenário só se altera com o doutoramento: apenas 3.8% foram atribuídos a mulheres. Quando à lida da casa se junta a “lida dos filhos” — e as mulheres são frequentemente consumidas por remorsos a priori, pela perspectiva do estigma da «má mãe»... —, é difícil encontrar tempo de dedicação à tese.


* A propósito disto, vou ver se encontro algumas passagens em que Moisés Espírito Santo fala sobre a forma infantilizante e desresponsabilizadora como o macho português é tradicionalmente educado, por contraposição à educação das raparigas, cedo apelidadas de “mulherzinhas”. Os resultados tornaram-se patentes quando a educação deixou de ser coutada deles: elas ganharam endurance, eles criaram bolor.

Etiquetas: , ,

#  Paridade

51,84% = 33,3%

Etiquetas: ,

07 março 2006

#  Qual Green Card, qual quê! (2)

E já agora, o único caso mais em que me ocorreu uma legenda (cartoon n.º 27):

(c) Drew Dernavich / The New Yorker
«My parrot will get in touch with your parrot!...»

Desenho de Drew Dernavich / The New Yorker

Etiquetas: , ,

#  Qual Green Card, qual quê!

Desde há coisa de um ano que a New Yorker tem um concurso de legendagem de cartoons: em cada número um dos cartoonistas da revista cria uma imagem (geralmente absurda) sem qualquer texto, devendo os leitores fornecer a legenda apropriada. As três melhores legendas são postas à votação e o vencedor é premiado com uma gravura do cartoon, devidamente assinada pelo artista, onde consta a sua legenda.

O senão de tudo isto é que se tem de ser residente nos EUA para poder concorrer.
(Não que esse tenha sido o maior obstáculo para mim até agora...)
Não conformado com isso, apresento aqui a minha sugestão para o cartoon n.º 41:

(c) Frank Cotham / The New Yorker
«An honest mistake: this must be the President's previous congregation...»

Desenho de Frank Cotham / The New Yorker

Etiquetas: , ,

#  Isto do sentido de humor...

... é um sinal de inteligência e sofisticação, como se sabe. E Art Spiegelman deu uma forte prova disso mesmo na edição da New Yorker datada de 27 de Fevereiro.

Reflexo pavloviano aos cartoons sobre Maomé, um Irão a espumar de raiva lançou um concurso internacional de cartoons que promovam o anti-semitismo e a negação do Holocausto. Spiegelman, judeu americano, autor de Maus, a aclamada série de banda desenhada sobre o Holocausto nazi, deu a resposta que tal iniciativa merece: não a reciprocação da raiva, não a retaliação com cartoons anti-islâmicos, mas a risada sarcástica de quem diz: «Tentem de novo — não é assim que me conseguem melindrar!»

O que fez Spiegelman? Simplesmente apresentou três cartoons, três “contribuições” para o concurso iraniano. Ao repetir, também ele, os clichés anti-semitas (os traços fisionómicos, a roupa, a ligação à alta finança, etc.), Art Spiegelman privou-os da sua força, mostrou o ridículo da iniciativa. E, com muita auto-ironia, consegui ainda dar uma alfinetada no interdito sobre a representação do “sagrado”.

(c) Art SpiegelmanNa legenda: «Que isto te sirva de lição, Abie — é proibido representar graficamente o Lucro
(lucro = “profit”; profeta = “profet”)

Etiquetas: , , ,

06 março 2006

#  Esclarecimento (2)

Para que conste, nada tenho que ver com «um inspector da PIDE, o conhecido torcionário Fernando Gouveia». Lá terei os meus pecadilhos de torcionário, mas nunca fui bom ao ponto de me tornar conhecido.

Etiquetas:

#  Corta-fita

Teoricamente, este blogue começou a 9 de Fevereiro, data do primeiro post.
De facto, começou a 23 — mas achei que os meus posts mais recentes no blogue da Periférica deveriam passar para a nova morada.
Na prática, o Não tenho vida para isto começou na sexta-feira passada, dia em que publiquei aqui o primeiro post não publicado simultaneamente no blogue da Periférica.
Oficialmente, a fita é cortada hoje, após o regresso do funeral do A Oeste Nada de Novo.

(c) Pascal Thivillon

Etiquetas: , ,

05 março 2006

#  O devido valor

O Público de sexta-feira dedicava parte significativa de uma página à história de Andreia e Oriana Belchior, duas irmãs de Mafómedes, Baião, cujo percurso escolar não foi interrompido aos nove anos de idade (estava-lhes destinada a «lida da casa») graças a Jorge Sampaio. Na altura, a intercessão do Presidente junto da autarquia foi fundamental para garantir o transporte que as levaria à telescola mais próxima. Hoje as gémeas estudam em Coimbra: Andreia em Direito, Oriana em Radiologia.

A história (como outras que haverá, certamente) é exemplar, sendo uma pena que os lamecho-jornalistas televisivos, os pedagogo-teólogos, os sociólogos do cliché, e demais corja demagoga, não lhe prestem a devida atenção — nem tirem as devidas ilações. Estas personagens, tão céleres na denúncia das condições socioeconómicas como culpadas de quase tudo, desaparecem sempre que chega o momento (sempre que surge a oportunidade) de analisar as razões do sucesso apesar das más condições socioeconómicas. Porque se Andreia e Oriana contaram com uma “ajudinha presidencial”, esta só garantiu que as duas irmãs teriam as mesmas condições — más — dos seus colegas de uma telescola perdida num dos concelhos mais atrasados e com mais baixo nível de vida do país; não lhes anulou o handicap social, apenas removeu um obstáculo adicional aos muitos com que elas já contavam e contaram.

Voltando à Teologia da Educação, esta, como já disse, inclui nos seus dogmas que a principal causa do insucesso escolar são as condições socioeconómicas: aqui é o bairro degradado, o desemprego de longa duração ou o trabalho mal remunerado dos pais; ali é a incontornável chaga da interioridade, da agricultura de subsistência. Num e noutro caso, eis a estigmatização social, o divórcio entre a realidade dos pobres alunos e a «alter-realidade» veiculada pelos programas curriculares perfidamente elitistas (problema “solucionável” com a chamada «escola multicultural» que, maquiavelicamente, condena os alunos desfavorecidos à eternidade dessa condição); num e noutro caso, eis a fuga dos melhores professores de tais escolas, abandonando os nativos ao desleixo de maus e desmotivados profissionais; e, num e noutro caso, nada pode ser imputado aos próprios alunos, às suas capacidades e à sua atitude (e, já agora, das suas famílias) relativamente à educação. Para uma «Escola centrada no aluno» (pois este dogma costuma emparelhar bem com o anterior), os alunos estão notavelmente ausentes das responsabilidades, como cascas vazias: mistérios, como convém a toda a Teologia.

Mas se importa analisar as causas do insucesso (e ninguém nega que os factores socioeconómicos são importantes), é talvez mais esclarecedor e operante detectar as causas do sucesso (não só nos casos em que este ocorre em classes desfavorecidas, mas principalmente aí), até porque o inverso destas lança nova luz sobre aquelas — e subitamente o ubíquo factor socioeconómico é apenas um factor.

Tudo isto para destacar as palavras das duas gémeas de Mafómedes: o seu percurso de sucesso (apesar da mísera pensão de invalidez dos pais e de uma incipiente agricultura familiar) é por elas explicado não só com a vontade de não desiludirem depois da ajuda do Presidente (não se deve menosprezar o poder da vergonha na cara e da responsabilidade), mas principalmente com o facto de terem aprendido a «dar o devido valor à escola». Andreia e Oriana perceberam que, na ausência de pais ricos ou na impossibilidade de participarem na próxima série de Morangos com Açúcar, a escola era o único passaporte para fora do buraco que Mafómedes é — talvez a única forma de garantirem que, se vierem a ter filhos, estes, para terem acesso a uma educação normal, não precisarão da “cunha” de quem ocupar o Palácio de Belém na década de 2020.

No extremo oposto da escala (o que nos leva às causas adicionais do insucesso, que os fundamentalistas do habitat fizeram profissão-de-fé ignorar), conviria talvez atentar nas palavras de um aluno da escola que por mais de uma vez ocupou o último lugar do ranking nacional (Pampilhosa da Serra?). Interrogado quanto às razões de tão maus resultados, e depois de os teóricos da coisa se terem já douta e longamente pronunciado sobre o caso, o tal aluno hesitou pouco na resposta: «Atão, a gente num estuda!...» — o que prova que até um mau aluno é capaz de um melhor diagnóstico do que um apóstolo do Eduquês.

Etiquetas:

#  Não me lembra nada nem ninguém

Reciprocar, v. Escrever acerca da «pena talentosa» de alguém que mencionou a nossa «imaginação espirituosa».

In Ambrose Bierce, Dicionário do Diabo (1906), Tinta-da-China, 2006

Etiquetas: , ,

04 março 2006

#  Post auto-referencial (auto-reverencial?)

Todas as manhãs, para saber o que penso sobre algo, leio este blogue.

Etiquetas: ,

03 março 2006

#  And the nominees for the “Chamberlain of the Year Award” are...

Não vi o debate mensal de ontem na Assembleia da República, mas pelo resumo dos telejornais e pelo que vem hoje na imprensa escrita, alguns exageros de retórica poderiam ter sido evitados, de parte a parte.

No entanto, apesar do assanhamento e do notório acerto de contas, o deputado Telmo Correia tem razão numa coisa: quando compara a postura do ministro dos Negócios Estrangeiros com a do primeiro-ministro inglês dos dias que antecederam a II Guerra Mundial.
Em resposta, Freitas do Amaral sustentou que não é deitando achas para a fogueira que se mantém a paz. Ora, a questão é, precisamente, que essas bem poderiam ser palavras de Neville Chamberlain — e todos sabemos que guerra é que a sua política de apaziguamento a todo o custo conseguiu evitar...

Etiquetas: , , , ,

#  Foi bom, mas soube a pouco

Capa de 'O Eduquês em discurso directo'
O 'Eduquês' em Discurso Directo, de Nuno Crato, edição Gradiva.

Poucos são os livros em que, como neste, a leitura é constantemente interrompida para exclamarmos de forma sentida (desesperada, mesmo), alto e bom som, mesmo que estejamos sozinhos: «Claro!»
Como defeito, só a brevidade. Quando se começa a ganhar balanço, acaba o capítulo. E é assim até ao fim do livro.

Etiquetas: , ,

#  Coisas que valeu a pena ler hoje

«Monstruosa inocência», de Esther Mucznik:
Que golpe de magia nos leva sistematicamente a transformar os carrascos em vítimas, a transfigurar os agressores em agredidos, a desculpar o indesculpável? [...] Esse golpe de magia tem um nome que corrói o nosso mundo: vitimização.
Vivemos num mundo de vítimas, em que todos são vítimas — menos os que têm o poder. [...]

«O direito à blasfémia», de Vasco Pulido Valente:
[...] o cardeal Policarpo avisou (preveniu? ameaçou?) aqueles de nós que sofrem da inominável fraqueza de ser ateus. Segundo ele, a nossa “dificuldade (reparem na palavra) em acreditar em Deus não toca na insofismável realidade de Deus” e, por isso, é nosso dever “respeitar a fé” [...]. O sr. cardeal, que manifestamente não pratica a tolerância que reclama ao próximo, não admite (e suponho que gostaria de eliminar) o “direito à blasfémia”.

Ambos no Público, ambos a ler integralmente.

Etiquetas: , , , ,

#  The Virgin made me do it...

Uma comissão parlamentar italiana conclui a favor da tese de que a URSS, através dos serviços secretos búlgaros, mandou assassinar o Papa João Paulo II em 1981. Se ainda forem vivos, os ex-responsáveis soviéticos e búlgaros podem sempre declarar-se um mero instrumento de Nossa Senhora de Fátima, que ao fim de 64 anos andava algo necessitada de um milagrito que cumprisse o Terceiro Segredo.

Desconhece-se a reacção de Maomé ao uso de um dos seus servos para a prossecução dos planos da Virgem. Mas talvez o facto de a dita ser de Fátima funcione como atenuante e estimule o diálogo ecuménico e a colaboração inter-religiosa.

Etiquetas: , ,

#  Um cartoonista para os tempos que correm

Cartoon de Michael Shaw / The New YorkerNa legenda: «Por favor, desfrute* deste cartoon cultural, étnica, religiosa e politicamente correcto de uma forma responsável. Obrigado.»
© Michael Shaw / The New Yorker

* Não arranjo melhor tradução...

Etiquetas: , , , ,