foto: Bruno Espadana

05 março 2006

#  O devido valor

O Público de sexta-feira dedicava parte significativa de uma página à história de Andreia e Oriana Belchior, duas irmãs de Mafómedes, Baião, cujo percurso escolar não foi interrompido aos nove anos de idade (estava-lhes destinada a «lida da casa») graças a Jorge Sampaio. Na altura, a intercessão do Presidente junto da autarquia foi fundamental para garantir o transporte que as levaria à telescola mais próxima. Hoje as gémeas estudam em Coimbra: Andreia em Direito, Oriana em Radiologia.

A história (como outras que haverá, certamente) é exemplar, sendo uma pena que os lamecho-jornalistas televisivos, os pedagogo-teólogos, os sociólogos do cliché, e demais corja demagoga, não lhe prestem a devida atenção — nem tirem as devidas ilações. Estas personagens, tão céleres na denúncia das condições socioeconómicas como culpadas de quase tudo, desaparecem sempre que chega o momento (sempre que surge a oportunidade) de analisar as razões do sucesso apesar das más condições socioeconómicas. Porque se Andreia e Oriana contaram com uma “ajudinha presidencial”, esta só garantiu que as duas irmãs teriam as mesmas condições — más — dos seus colegas de uma telescola perdida num dos concelhos mais atrasados e com mais baixo nível de vida do país; não lhes anulou o handicap social, apenas removeu um obstáculo adicional aos muitos com que elas já contavam e contaram.

Voltando à Teologia da Educação, esta, como já disse, inclui nos seus dogmas que a principal causa do insucesso escolar são as condições socioeconómicas: aqui é o bairro degradado, o desemprego de longa duração ou o trabalho mal remunerado dos pais; ali é a incontornável chaga da interioridade, da agricultura de subsistência. Num e noutro caso, eis a estigmatização social, o divórcio entre a realidade dos pobres alunos e a «alter-realidade» veiculada pelos programas curriculares perfidamente elitistas (problema “solucionável” com a chamada «escola multicultural» que, maquiavelicamente, condena os alunos desfavorecidos à eternidade dessa condição); num e noutro caso, eis a fuga dos melhores professores de tais escolas, abandonando os nativos ao desleixo de maus e desmotivados profissionais; e, num e noutro caso, nada pode ser imputado aos próprios alunos, às suas capacidades e à sua atitude (e, já agora, das suas famílias) relativamente à educação. Para uma «Escola centrada no aluno» (pois este dogma costuma emparelhar bem com o anterior), os alunos estão notavelmente ausentes das responsabilidades, como cascas vazias: mistérios, como convém a toda a Teologia.

Mas se importa analisar as causas do insucesso (e ninguém nega que os factores socioeconómicos são importantes), é talvez mais esclarecedor e operante detectar as causas do sucesso (não só nos casos em que este ocorre em classes desfavorecidas, mas principalmente aí), até porque o inverso destas lança nova luz sobre aquelas — e subitamente o ubíquo factor socioeconómico é apenas um factor.

Tudo isto para destacar as palavras das duas gémeas de Mafómedes: o seu percurso de sucesso (apesar da mísera pensão de invalidez dos pais e de uma incipiente agricultura familiar) é por elas explicado não só com a vontade de não desiludirem depois da ajuda do Presidente (não se deve menosprezar o poder da vergonha na cara e da responsabilidade), mas principalmente com o facto de terem aprendido a «dar o devido valor à escola». Andreia e Oriana perceberam que, na ausência de pais ricos ou na impossibilidade de participarem na próxima série de Morangos com Açúcar, a escola era o único passaporte para fora do buraco que Mafómedes é — talvez a única forma de garantirem que, se vierem a ter filhos, estes, para terem acesso a uma educação normal, não precisarão da “cunha” de quem ocupar o Palácio de Belém na década de 2020.

No extremo oposto da escala (o que nos leva às causas adicionais do insucesso, que os fundamentalistas do habitat fizeram profissão-de-fé ignorar), conviria talvez atentar nas palavras de um aluno da escola que por mais de uma vez ocupou o último lugar do ranking nacional (Pampilhosa da Serra?). Interrogado quanto às razões de tão maus resultados, e depois de os teóricos da coisa se terem já douta e longamente pronunciado sobre o caso, o tal aluno hesitou pouco na resposta: «Atão, a gente num estuda!...» — o que prova que até um mau aluno é capaz de um melhor diagnóstico do que um apóstolo do Eduquês.

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