foto: Bruno Espadana

20 março 2006

#  Quotas: analogia falaciosa

Luís Salgado de Matos (LSM) escreve no Público de hoje sobre o estabelecimento de quotas para as listas eleitorais, a que se opõe. O autor apresenta alguns argumentos válidos (o tema está longe de ser preto-no-branco), mas não consegue resistir a uma certa falácia: estabelecer (ainda que de forma pouco clara) um paralelo entre as quotas nas listas eleitorais e as quotas no acesso ao curso de Medicina, sugeridas há uns tempos por um grupo restrito de médicos:
Como entre nós prevalece a igualdade social das mulheres, já há queixosos que querem quotas para homens. Mas são só médicos e mesmo assim poucos. Queixosas de desigualdade, há apenas as militantes dos partidos políticos. As outras, mesmo sem igualdade, julgam que conseguirão melhorar a situação pelos seus próprios meios.
A comparação das duas situações é abusiva, pois, ao contrário do que se passa na elaboração das listas eleitorais dos partidos políticos, a selecção dos futuros médicos parte de uma efectiva avaliação do seu mérito (o percurso académico), ainda que se admita ter esta avaliação um valor discutível (um bom percurso no Ensino Secundário não é garantia de sucesso no curso de Medicina — e um bom aluno de Medicina não é necessariamente o melhor dos médicos).

LSM tem, por isso, alguma razão quando afirma que «o problema é dos partidos e não da sociedade» (“alguma”, porque tratar os partidos como algo externo à sociedade é esquizofrenia social). Mas erra bastante mais no diagnóstico que se segue:
Os partidos apresentam-se neste caso como viveiros de cidadãos subprivilegiados que necessitam da força para conseguirem a igualdade que os outros portugueses alcançaram por si mesmos.
LSM olha para os partidos e choca-o um suposto proteccionismo feminino que aí vem. Estranhamente, escapa-lhe o bem mais evidente proteccionismo masculino que está cá desde sempre, e que me dá todo o direito de reescrever a frase anterior:
Os partidos apresentam-se como viveiros e coutadas de cidadãos privilegiados que conseguem manter um statu quo de desigualdade que, noutros campos e de outra forma, não alcançariam por si mesmos.
Porque, se como o próprio LSM reconhece, a realidade actual é a de que as mulheres «se afirmam em quase todos os terrenos da vida social e se tornam maioritárias em todas as profissões de prestígio — sem quotas, pelo mérito», impõe-se a pergunta: acreditará Luís Salgado de Matos que é dessa forma, «pelo mérito», que os homens se afirmam esmagadoramente na política? Se sim, gostaria de ver a sua definição de «mérito».

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