foto: Bruno Espadana

26 janeiro 2007

#  Letra escarlate

Um dos argumentos dos apoiantes do Não para rejeitarem a proposta de alteração da lei é mais ou menos este:
A lei será inútil no combate ao aborto clandestino, pois quem tiver meios financeiros continuará a abortar em clínicas privadas [subentenda-se: clandestinas, mesmo que com todas as condições] e não nos hospitais públicos, para garantirem o sigilo.

Ora, daqui — mesmo admitindo que o cenário é válido — não se pode concluir da inutilidade da nova (e melhorada) legislação. É que o objectivo da alteração à lei não é criar uma Base de Dados Nacional das Mulheres “Abortistas”, muito menos dar-nos «ao menos» o prazerzinho mórbido de vê-las passar a humilhação da exposição pública do seu “pecado”, qual versão moderna da Letra Escarlate. (Digo que não é objectivo da lei — não que não é derradeira esperança dos apoiantes do Não, vença o Sim.)

Os objectivos primordiais da lei são dois:
  1. despenalizar aquilo que a esmagadora maioria considera, de facto, que não é crime;
  2. acabar com o aborto sem condições.

O primeiro objectivo (o mais importante dos dois, até porque sem ele não se atinge o segundo) é evidente: não se pode, num Estado de direito, deixar impune aquilo que a lei diz que é crime; mas não se pode, em nome da coerência, penalizar criminalmente aquilo que os valores esmagadoramente maioritários dizem não ser crime (por maioria de razão, não podemos, individualmente, defender que seja socialmente considerado crime aquilo que nós consideramos não o ser).

Quanto ao segundo objectivo, pretende-se evitar na medida do possível todos os perigos para a saúde da mulher, resultantes de abortos feitos em condições deficitárias, para que nenhuma mulher se veja obrigada a dizer: «Fiz um aborto sem quaisquer condições de higiene e segurança, porque não tive meios financeiros nem contactos para conseguir um aborto seguro» — ou pior: que já não esteja cá para o dizer.

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