foto: Bruno Espadana

25 janeiro 2007

#  Deus e o aborto: desfazendo alguns mitos

Mas uma coisa é reconhecer à Igreja Católica o direito de, arbitrariamente, ditar as regras por que se rege o seu rebanho — outra bem diferente é fechar os olhos às incongruências que surgem quando fundamenta os seus ditames comportamentais (que quer impor mesmo àqueles que não se inscrevem entre os seus) em valores supostamente absolutos e claros. Um desses valores é a vida, em que a Igreja inclui a vida intra-uterina.
(Digo «a Igreja», porque a Lei portuguesa distingue as duas coisas: o Código Penal coloca em capítulos diferentes os «crimes contra a vida» e os «crimes contra a vida intra-uterina».)

Voltando à argumentação da Igreja Católica, a recusa do aborto fundamentar-se-ia, supostamente, na sacralidade absoluta da vida, expressa no interdito divino do Decálogo («Não matarás», Êxodo 20:13) e, antes disso, no significativo episódio de Caim, o fratricida a quem Deus apesar de tudo protege (Génesis 4:14–15), não deixando que o façam pagar pelo seu crime com a morte.
(Estas passagens servem também para argumentar contra a existência da pena de morte — pena a que eu me oponho a 100%, em todo e qualquer caso, mas que, estranhamente, é admitida em determinadas circunstâncias pela Igreja Católica.)

Mas convém desmontar tais interpretações, porque:
  1. nem para Deus (segundo a Bíblia) a vida é um valor absoluto;
  2. nem o feto é equiparado a um ser humano;
  3. nem, consequência do anterior, o aborto é equiparado ao homicídio.

Vejamos:

1. Para Deus (segundo a Bíblia) a vida não é um valor absoluto.
Vou passar este argumento sem mais delongas, pois é lateral à nossa questão. As provas desta minha afirmação encontram-se por toda a Bíblia (com muita morte caucionada por Deus), e de forma particularmente clara nos capítulos 21 e 22 do Êxodo.

2. Para Deus (segundo a Bíblia) o feto não é equiparável a um ser humano.
3. Para Deus (segundo a Bíblia) o aborto não é equiparável ao homicídio.
A prova de prova de 2 obtém-se da prova de 3: ao não prescrever para o aborto a mesma pena que para o homicídio, conclui-se que Deus não equipara o feto a um ser humano, sendo muito menos grave abortar do que matar alguém. E é exactamente o que acontece em Êxodo 21:22:
«Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes;»
Ou seja, enquanto o homicídio (Êxodo 21:12) e muitos outros crimes são punidos com a pena de morte, o aborto é um mero objecto de sanção pecuniária: quem provoca o aborto numa mulher (sem ser a pedido dela) deve indemnizar a família lesada. O aborto (uma vez mais, provocado por terceiros sem ser a pedido da grávida) só passa a ser crime se puser em perigo a vida da mulher, conforme se pode deduzir do versículo 23 do mesmo capítulo:
«mas se resultar dano, então darás vida por vida,»
Conclusão: o que é crime é o dano provocado à mulher, não ao feto.


E o que diz Deus quanto ao aborto feito a pedido da mulher? Nada, pelo menos a julgar pela Bíblia.
A palavra «aborto» (ou melhor, alguma forma do verbo «abortar» ou equivalente) só aparece na Bíblia por duas (ou talvez três) vezes: no versículo já citado; no livro de Oseias (9:14), em que o profeta pede a Deus que castigue o Povo Eleito (tornado iníquo) com «um útero que aborte e seios ressequidos»; e talvez no Salmo 29, versículo 9, em que a temerosa voz de Deus é apresentada como «fazendo as corças dar à luz» [subentende-se que antes do tempo, provocando-lhes o aborto].

Ou seja, para além de Deus apenas prescrever penas para o aborto provocado por terceiros contra a vontade da mulher (à semelhança do n.º 1 do Artigo 140.º do Código Penal português, mas sendo Deus mais brando), a Bíblia só volta a falar no assunto em sentido figurado (como sinal da ira ou do poder divino). E mais nada. Nenhuma criminalização da mulher que decide abortar.
Por isso, quem se opõe às alterações aos números 2 e 3 do Artigo 140.º do Código Penal (que tratam das penas de prisão para o aborto com consentimento da mulher) — e é disso que o Referendo trata — tem de procurar outro sítio para sustentar a sua posição. No registo da sua palavra que Deus nos deixou nada consta.

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