foto: Bruno Espadana

30 janeiro 2007

#  Da multifuncionalidade das crianças

Mário Negreiros, Jornal de Negócios, hoje:

Inocentes úteis

Olho para as criancinhas a empunhar cartazes na manifestação do último domingo pelo NÃO e pergunto-me como se formulará a questão do aborto quando não se dispõe de mais do que do universo infantil.

Logo à partida, a ideia de uma mulher ter na barriga um filho indesejado deve ser estranhíssima num universo onde MÃE é outra maneira de dizer AMOR. Será preciso diabolizar essa mulher para que as coisas voltem a fazer sentido.

[...] Dizer-lhe que há mães que vão ao médico para arrancar o próprio filho da barriga e deitá-lo ao lixo é dizer-lhe que há coisas muito piores do que a mais horrível história de bruxas jamais inventada.

[...] Estão aí envolvidos aspectos biológicos, éticos, sociais etc., etc., etc., que vão muito além da capacidade de compreensão de uma criança e que, a rigor, nem os adultos dominam com segurança. Por isso os cartazes antiaborto postos nas mãos das crianças são abusivos. Envolvem as crianças num tema que não dominam e de que deveriam ser poupadas enquanto não tivessem os elementos de que precisam para formar uma posição ou para, ao menos, terem dúvidas.

Excelentemente exposto: Da parte do Não, o «amor às crianças não nascidas» caminha de mãos dadas com a instrumentalização das crianças* (que no seu guia de conversação se designam «crianças nascidas»). Para o Não, os filhos não são um fim em si mesmo, um sujeito, mas um meio para algo maior: servem para combater o decréscimo populacional (sem termos de importar chineses, pretos e ucranianos) e salvar a Segurança Social; servem para “consolidar” um casamento (que de outra forma se desmorona, e frequentemente desmorona-se mesmo assim); servem para «dar um ar q'rido à coisa» nos anúncio de óleo para fritar; servem para carregar os cartazes da indignação dos pais* — e, claro, graças ao Art.º 140º, n.º 3 do Código Penal, servem para punir as rameiras/frívolas/levianas. Há mil utilizações para uma criança — custa a crer que não se façam mais.

* (Adenda: não se contentando com a instrumentalização dos seus próprios filhos, manipulam também os filhos dos outros.)


O excerto seguinte vai na linha de algo que escrevi ontem:
E põem asneiras nas bocas, ou nas mãos dos próprios filhos — “Sou feliz porque nasci. Obrigado, pais”, foi um dos cartazes vistos nas mãos de uma criança na manifestação de domingo. Podia ser “Sou infeliz porque nasci, malditos pais” , “Sou mais ou menos porque nasci, pais”, “Sou engenheiro-químico porque nasci, olá pais” ou “tenho cancro e vou morrer porque nasci, adeus pais”, para não falar em “tenho fome, fui violentada, humilhada e espancada porque nasci”.

Quando, isto digo eu, os únicos dizeres verdadeiros seriam: «Não pedi para nascer nem o contrário, não sei bem o que faço aqui, o que é esta coisa de existir — e parece-me que o mesmo se passa com vocês. E agora, pais?»


O artigo de Mário Negreiros termina de forma magistral:
Mas sem crianças não se fazem manifestações antiaborto porque o que está subjacente na exposição das crianças e dos seus cartazes é que os amigos da vida e das crianças são pelo NÃO, e os que estão pelo SIM são, necessariamente, inimigos da vida e detestam as crianças e são feios e muito maus. É para servirem de prova e de testemunho que as crianças são levadas às manifestações antiaborto, muito embora não saibam exactamente o que estão ali a provar ou a testemunhar. São inocentes. Mas são úteis.

E, ao contrário do proverbial «idiota útil», são fotogénicas.

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