foto: Bruno Espadana

27 janeiro 2007

#  Da (quase) desnecessidade da comparticipação estatal do aborto

Num longo e interessantíssimo artigo publicado ontem no seu blogue, Tiago Mendes demonstra (mesmo àqueles que, leigos como eu, resistam ao susto inicial de termos económicos como «lucro normal», «rendas económicas», «rendas por informação imperfeita», etc.), demonstra, dizia eu, que os tão diabolizados lucros do negócio do aborto clandestino são, esmagadoramente, legítimos.

Para sintetizar (mas o melhor é mesmo ler o artigo todo), Tiago Mendes divide esses lucros em cinco componentes, que analisa separadamente:
  1. A simples remuneração do serviço prestado (é preciso não esquecer que há um serviço que é requerido por alguém e efectivamente prestado).
  2. O prémio de risco, resultante da ilegalidade do acto. (Será porventura a componente que mais agrava os preços.)
  3. A falta de informação mantém os preços mais altos (em vez de uma completa e aberta rede de informação sobre os praticantes de aborto, temos uma infinidade de micro-redes clandestinas, cada uma gravitando à volta da sua clínica em posição monopolista de facto).
  4. O lucro obtido por “aproveitamento” da situação de fragilidade da mulher (que, dada a sua situação — urgência, clandestinidade, falta de alternativas ou desconhecimento delas —, tem pouco “poder negocial” e vê-se forçada a aceitar o preço que lhe é apresentado, mesmo que exorbitado).
  5. Os lucros resultantes de outros factores, nomeadamente a qualidade do serviço prestado (todo um espectro, do vão de escada à clínica topo de gama) e o facto de, sendo ilegal, haver menos prestadores deste serviço do que numa situação de legalidade (lei da oferta e da procura).

A conclusão de Tiago Mendes, e que eu subscrevo, é que das cinco componentes apenas a quarta é ilegítima.

Tiago Mendes promete para um post futuro demonstrar que, ao contrário do que muitos (mesmo do lado do Sim) afirmam, a comparticipação por parte do Estado não é condição sine qua non para a melhoria das condições do aborto prestado às mulheres mais pobres. Como diz o autor do “Logicamente, sim”:
«O fim da ilicitude do aborto, por si só, permitirá melhorias de vária ordem.»

Se o Tiago me permite, eu, como bom aluno, tentarei antecipar a demonstração do Mestre:
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 2, pois deixará de haver risco legal.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 3, pois a legalidade trará o acréscimo da informação, livremente acessível, sobre quem presta o serviço e a que preço.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá drasticamente a componente 4, pois o poder negocial da mulher aumenta: está mais bem informada, não tem sobre si o handicap da ilegalidade. Só não diminuirá o custo advindo da urgência e do desejo de privacidade (que não desaparece com a legalização): não há tempo para uma longa e completa pesquisa ao mercado, à procura da melhor relação qualidade/preço, muito menos se irá abrir um concurso público para a prestação do aborto... mas a disponibilização livre de informação sobre as clínicas de aborto existentes tornará a escolha mais rápida e acertada.
  • a legalização do aborto a pedido da mulher diminuirá a componente 5, pois, ainda que não vá haver uma explosão de clínicas de aborto (como os alarmistas do Não nos querem convencer), haverá certamente um aumento do seu número, porque são as sanções resultantes do interdito legal e não as reservas éticas ou morais que demovem muito do pessoal médico e de enfermagem da prática da interrupção da gravidez.

A grande conclusão é que a legalização, por si só, diminuirá em muito os custos de um aborto, tornando a interrupção da gravidez em condições de segurança e higiene mais acessível a todos os estratos sociais. (Uma vez mais, que não se pense que o simples facto de ser mais barato vai levar ao aumento desmedido do número de abortos — ninguém faz um aborto apenas para não perder “preços de ocasião”...)

Etiquetas: ,