foto: Bruno Espadana

26 janeiro 2007

#  A falácia das 10 semanas e 1 dia

Uma das inúmeras falácias do Não reza assim:
Que lógica é esta, que se a mulher abortar até às 10 semanas está tudo bem, ninguém tem nada com isso — mas, se aborta às 10 semanas e 1 dia, já é crime e deve ir para a prisão?!

A questão de a lei despenalizar algo até um certo limite e penalizar para lá desse limite não deveria horrorizar ninguém, pois acontece nas mais variadas matérias (legais e não legais): resulta de uma necessidade prática, uma vez que a lei é supostamente para ser aplicada na prática.

Em Portugal, um aluno com 8,4 valores reprova — com 8,5 tem direito a uma prova oral e à respectiva oportunidade de passar; no entanto, o aluno com 8,5 só obteve uma nota 1,19% superior ao infortunado que inapelavelmente reprovou com 8,4. De igual forma, um aluno que obtenha 9,4 valores na prova escrita reprovará se não se submeter (com sucesso) a uma prova oral, enquanto o aluno que obteve 9,5 valores (uns míseros 1,06% mais) está aprovado sem mais obrigações.

Avançando para o foro criminal: em Portugal, um condutor que seja apanhado a conduzir com 1,2 gramas de álcool por litro de sangue é imediatamente detido e presente a tribunal pela prática de um crime; já o condutor cuja taxa de alcoolemia seja de 1,19 g/l é simplesmente multado e inibido de conduzir, não sendo acusado de qualquer crime. Ou seja, um ínfimos 0,84% mais de álcool no sangue são o suficiente para que o primeiro seja um criminoso e o segundo não.

Voltando à questão do “risco no chão” entre as 10 semanas (70 dias) e as 10 semanas e 1 dia (logo, 71 dias): a diferença é de mais 1,43%, bem superior à dos casos anteriores, que no entanto são pacíficos.

Mas poderão dizer: «Aqui estamos a discutir uma questão de vida ou de morte, de considerarmos que um ser é ou não já humano (e com os respectivos direitos) — não de aprovação em exames ou condução sob o efeito do álcool.» Concedido. Mas então, por que não questionam o prazo de 12 semanas para se realizar legalmente um aborto e «evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida» (Art.º 142.º, n.º 1, alínea b do Código Penal)? Ou o prazo de 16 semanas, nos casos em que a «gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual» [leia-se: violação] (alínea d)? Ou ainda o prazo de 24 semanas para realizar legalmente um aborto se houver «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita» (alínea c)? Ou, pela mesma alínea, a possibilidade de abortar «a todo o tempo» (isto é, sem qualquer prazo) se o feto for considerado inviável? Se o feto mal-formado não é um ser humano às 24 semanas (porque em Portugal não há pena de morte, logo a única conclusão é que a lei não reconhece o feto como um ser humano de facto), então, pela lógica do N+1, também não o é às 24 semanas e 1 dia. E se já o é às 24 semanas (até mesmo menos 1 dia), então temos de declarar o Art.º 142.º do Código Penal como inconstitucional, porque este artigo, na prática, condena à morte o feto disforme.

A lógica do N+1, qual paradoxo de Zenão, tem duas consequências extremas e mutuamente exclusivas, contraditórias: dependendo do sentido que tomarmos na sucessão numérica, ora chegaremos à conclusão de que o feto é um ser humano (logo, pleno de direitos) desde o momento zero da fecundação — donde derivamos a proibição total de todos os abortos, em todas as circunstâncias —, ora concluiremos que nem 9 meses chegam para que passe a ser um humano (ganhando, enfim, os respectivos direitos) — e consequentemente não existe limite temporal para a realização do aborto.

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