foto: Bruno Espadana

31 janeiro 2007

#  Ricochete: a falácia das razões económicas

Depois de andar a denunciar falácias do Não, vou agora apontar o dedo a uma falácia do Sim. Faço-o por três razões:
  • Por respeito à verdade
  • Por respeito às minhas convicções
  • Porque é uma falácia que faz ricochete e prejudica os objectivos do Sim

A falácia em causa (que, obviamente, não é de todos os apoiantes do Sim) é uma mistura de três falácias: ocultação de factos, generalização abusiva e, o mais importante porque determina as anteriores, argumentum ad crepidam (o argumento da miséria).

Pelo que foi dito em último lugar já adivinham a que me refiro: ao bater na mesma tecla das razões económicas como subjacentes aos casos de aborto clandestino, a que os sindicalistas (como segunda-feira à noite no Prós & Contras) acrescentam, na mesma linha, razões de ordem laboral (pressão patronal, ameaça de despedimento, ciclo laboral incompatível com a maternidade).

Não me interpretem mal: tudo isso é verdade... mas não é a verdade toda (por isso falo em ocultação de factos e generalização abusiva).
Há certamente mulheres para quem esse factor foi o determinante, há outras para quem foi mais um factor, há ainda outras para quem as questões económicas e laborais não foram, de todo, um factor na equação. Os dados do Estudo-Base sobre as Práticas de Aborto [voluntário] em Portugal, da responsabilidade da Associação para o Planeamento da Família, estão aí: só 14,1% das mulheres apontaram falta de condições económicas para a realização do aborto; as restantes referem motivos como pressões familiares (8,0%) e/ou do marido/companheiro (9,4%), instabilidade conjugal (9,1%), problemas de saúde não enquadráveis na lei (4,2%), idade considerada inadequada (demasiado nova, 17,8%, ou demasiado velha, 2,6%)... ou por não desejar de todo ter filhos (13,2%).
O que é preciso dizer (eu pelo menos digo-o, porque é no que acredito) é que tudo isso são motivos legítimos* — ou, pelo menos, nenhum de nós tem legitimidade para dizer que não o são. Não é preciso descer à caricatura da mulher, exagerando o relevo de um aspecto, para, despertado em terceiros o magnânimo instinto de misericórdia, lhe garantir a remissão. Menos grave do que as praticadas pelos apoiantes do Não, esta pode ser também uma forma de menorização paternalista das mulheres, para as quais seria preciso forjar desculpas piedosas (argumentum ad misericordiam — afinal são quatro).

* (Parênteses: note-se que, no que toca à «pressão do marido/companheiro», considero legítima a cedência da mulher a essa pressão — milénios de violência doméstica, física e psicológica, mostram-nos como pode ser inexorável —, não a pressão em si, que é inaceitável.)

Mas não só por respeito à verdade e às minhas convicções sinto repugnância por esta hipertrofia do factor económico: adicionalmente, a insistência nessa tecla permite aos defensores do Não insinuarem que tudo se resolve com dinheiro, com o apoio financeiro às mulheres que consideram a possibilidade de abortar. Veja-se a intervenção do Dr. João Paulo Malta no Prós & Contras, para quem a solução milagrosa para acabar com o aborto clandestino consiste em deixar a lei na mesma e usar antes o dinheiro que o Estado irá supostamente gastar a financiar abortos (se o Sim vencer) para incentivar a maternidade através do apoio monetário às mulheres mais pobres. Como se o abono de família (por elevado que fosse) resolvesse todos os problemas de saúde, nos desse a maturidade que ainda tarda ou devolvesse a juventude perdida; como se os subsídios estatais criassem, naqueles que a não têm, a vontade de ter filhos.
(A falta de subvenções pode, realisticamente, demover os que anseiam a maternidade/paternidade, mas o inverso não é verdade entre as pessoas com escrúpulos, para quem os filhos não são “galinhas dos ovos de ouro” ou máquinas com que mugir a “vaca leiteira” do Estado.)

É preciso passar a mensagem, por isso repito-o:
O dinheiro não resolve tudo, porque a falta dele não é o único factor, nem sequer o de maior peso; há muitos mais motivos que levam uma mulher a abortar e todos são legítimos — ou, pelo menos, nenhum de nós tem legitimidade para dizer que não o são.

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