foto: Bruno Espadana

03 fevereiro 2007

#  A falácia da «definição de vida humana»

Numa acesa troca de argumentos, diz-me a certa altura um apoiante do Não, a quem eu acusava não perceber que o que está em jogo no Referendo é uma questão legal (o Código Penal):
«Tem razão, não sei muito de Direito... mas sei de Ciência. [...] Reafirmo o que disse: este critério não pode ser adoptado para definir vida humana»

Pois o problema é todo esse: não saber nada de Direito ou de leis. Pois é disso que o Referendo de 11/02 trata: da Lei e da possibilidade da sua alteração.

O referendo não trata de Ciência, de Filosofia, de Ética ou de Moral — isso não são matérias referendáveis. O Referendo trata da Lei. Obviamente, cada eleitor está no seu direito de decidir o seu voto com base no que quiser (Ciência, pseudo-ciência, Filosofia, Ética, Moral, Fé...) — mas o Referendo trata de leis.

É exactamente por tratar da Lei e não da Ciência ou da Moral que o Referendo não pretende «definir vida humana». É um engano pensar que, se a Lei não punir o aborto até às 10 semanas, então a Lei está (implicitamente) a dizer que o feto até às 10 semanas «não é humano». A Lei não diz (não dirá) que é nem que não é: o que a lei dirá é que até às 10 semanas a Lei não protegerá o feto das decisões da mulher grávida (ou seja, se ela decidir abortá-lo não será legalmente punível).

Por exemplo, a lei actual permite abortar até às 16 semanas o feto resultante de uma violação. Quer isso dizer que o feto resultante de uma violação é “menos humano” às 16 semanas do que o feto resultante de uma noite de amor mútuo às 3 semanas de gestação? Não! Quer simplesmente dizer que, por razões que podemos considerar aceitáveis ou não, a Lei considera que o feto resultante de violação não tem protecção legal até às 16 semanas (podendo por isso ser abortado sem punição).

Para tornar mais clara esta distinção (entre protecção legal e qualquer reconhecimento “oficial” de humanidade), vou sair do domínio restrito do aborto e avançar para a vida extra-uterina.

ALERTA: Exactamente por ir falar de outra coisa que não de aborto e fetos, PEÇO ENCARECIDAMENTE aos «caçadores de citações bombásticas» que não retirem o que vou dizer do contexto e, com desonestidade intelectual, me ponham a dizer o que não disse. Obrigado desde já aos que resistirem a tal tentação.


Feito o alerta, aqui vai:

O Código Penal reconhece o direito de legítima defesa* (Artigos 31.º a 33.º), que vai ao ponto de inocentar alguém que, legitimamente (como única forma de preservar a sua própria vida), mate quem o ataque com intenção de matar — para não ser ele a morrer.
Ou seja, o que a Lei diz é que quem ataca alguém com intenção de a matar não tem menos direito à protecção da Lei, pelo que se o atacado reagir e quem morrer for o atacante, o atacado (que acabou por ser o que mata e não o que morre) não será legalmente punido.

Pergunta: Está a Lei a dizer que o atacante deixou de ser humano? (Atenção: não no sentido “popular” da palavra, isto é, igual a «bondoso», «caritativo», «sensível»... mas no sentido de «pessoa».)
Resposta: Não, a Lei não nega a humanidade do atacante-tornado-vítima. O que a Lei diz é que a vida do atacante não tem a protecção da Lei. Só isso.

* Uma vez mais, e para os esquecidos, peço que não vejam aqui qualquer comparação ou insinuação do tipo “aborto = legítima defesa”!!! EU NÃO ESCREVI ISSO, EU NÃO DEFENDO ISSO, EU NÃO PENSO ISSO!
O exemplo serve só para ilustrar que a ausência de protecção legal nada tem a ver com um atestado de «não humanidade» — e por isso apresentei uma caso em que é indiscutível os protagonistas serem duas pessoas.


Voltando ao tema do referendo: É lógico que podemos ou não concordar com tal perda de protecção legal por parte do feto com menos de 10 semanas. Se concordamos, devemos votar Sim; se não concordamos, devemos votar Não. É tão simples quanto isso. Mas, seja qual for o nosso sentido de voto, não estamos a definir princípios de vidas, não estamos a decidir o que é um ser humano e o que não é. Estamos a decidir se um acto é ou não um crime, se a mulher que decidi praticar esse acto é ou não criminosa — e se, por isso, deve a Lei puni-la ou não.

Etiquetas: ,