foto: Bruno Espadana

26 setembro 2006

#  O “eduquês” em acção

Uma das características principais do “eduquês” é o seu fascínio pelo “fogo-de-artifício”, pela complexidade discursiva desnecessária (sinal de incapacidade de um discurso claro e objectivo?), pelo glamour a maquilhar o vazio de ideias ou a sua inconsistência.

Vejamos um exemplo, retirado do Projecto Educativo de uma Escola Secundária portuguesa. Sob o lema «Criar uma mais forte dinâmica de aprendizagem», podemos lá ler coisas como:
O modo como os alunos são motivados para a aprendizagem exige a concepção e implementação de metodologias que, não sendo lineares, geram estímulos conducentes a diferentes graus de adesão às propostas de aprendizagem, numa continuidade entre o universo interior e exterior do indivíduo.

Sou só eu a achar que isto não quer dizer, objectivamente, nada? Que mais nada é do que plumas e lantejoulas?

Mas a jóia-da-coroa deste Projecto Educativo de Escola (PEE) é o «diagrama de confluências» constante do seu Plano de Acção. Ei-lo:

Diagrama de confluências
Diligentes, os autores de tal diagrama vêm imediatamente em socorro daqueles que tenham dúvidas quanto ao seu significado:
A associação destes quatro trípticos à palavra-chave ajudará a uma maior coerência de acção. Em primeiro lugar, seria de estreitar a relação aprender – esforço para situar os alunos numa rota de trabalho e desejo de vencer as dificuldades. Ao mesmo tempo, a introdução de mais desafio nas aprendizagens dará mais sentido ao trabalho que contribuirá de forma mais evidente para o crescimento pessoal de cada um. A ideia de desafio deverá presidir também à interacção quotidiana entre adultos e jovens, de modo a que o relacionamento na Escola seja mais exigente, mais elaborado, possibilitando o acesso à metáfora e, de um modo geral, ao desenvolvimento da capacidade de simbolização, cujo domínio é condição de autonomia no acesso à interpretação do mundo. É o enriquecimento da convivência que faz descobrir a originalidade de cada um e a capacidade própria de transformação criadora.

Os autores referem-se a este diagrama como «quatro trípticos» — eu apelidá-lo-ia de «quadro críptico» (mas quiçá simplesmente não me tenha sido possibilitado o «acesso à metáfora»). É que não só a palavra-chave lhe é exterior (logo, é impossível saber quais as vias para «estreitar a relação aprender – esforço»), como é notório que os próprios autores não estão muito seguros quanto à notação adoptada. Por exemplo, quando se diz que «a introdução de mais desafio nas aprendizagens dará mais sentido ao trabalho que contribuirá de forma mais evidente para o crescimento pessoal de cada um», está-se a atribuir à seta um valor de relação causal:

causa => efeito/consequência

Mas na primeira linha do diagrama (trabalho => esforço => dificuldade) a seta não pode ter o mesmo valor, ou as dificuldades seriam consequência (efeito) do esforço. Ora, são as dificuldades e o desejo de as vencer que ditam a necessidade de esforço (ou seja, há lugar ao esforço porque lhe preexistem as dificuldades, e estas determinam a subsequente existência daquele), pelo que a seta no segmento «esforço => dificuldade» não representa uma relação causal, como no caso anterior, mas sim uma relação condicional
antecedente => consequente
do tipo necessária (se há esforço, é porque há dificuldades), em que o antecedente é, de facto, a consequência e o consequente é a causa:

efeito/consequência => causa

(A confusão entre uma relação causal — que é inerentemente temporal — e uma relação condicional — que o não é —, habitualmente fruto de se pensar que o consequente é uma consequência e o antecedente é uma causa — o que só é verdade nas condições suficientes —, resulta numa das falácias mais comuns, o non-sequitur.)

Desejando manter-se a seta com valor de relação causal, haveria necessidade de inverter este segmento do diagrama (dificuldade => esforço). Seria ainda necessário explicar por que razão todas as setas verticais são bidireccionais, enquanto as horizontais são exclusivamente unidireccionais (e sempre da esquerda para a direita) — para além de esclarecer se, quando identificamos a «capacidade de simbolização» como «condição de autonomia no acesso à interpretação do mundo», estamos perante uma condição necessária ou suficiente (ou ambas).

Mas talvez tal não seja necessário, pois os objectivos do diagrama estão cumpridos: impressionar, dando ares de seriedade e rigor. E, para isso, quanto mais complexo (de facto: confuso), melhor: ignorante daquilo que seja a Lógica, o leitor-alvo (no qual se incluem os diferentes estratos da hierarquia do Ministério da Educação) concluirá, assombrado, que grandes processos cerebrais (individuais e colectivos) presidiram à elaboração do diagrama — e seguirá em frente sem se questionar (e, mais importante, sem o questionar).


Mas, para sermos justos, admitamos que há neste PEE ideias claramente expostas:
Sob o ponto de vista pedagógico, as práticas educativas devem ser significativas, com enfoque no complexo processo do que significa e do que se deseja aprender.

Ideias claramente expostas — e claramente perigosas. A utopia romântica de o aluno ser o autor do seu próprio currículo («Vai aonde te leva o coração»?) é desastrosa e geradora de ignorância. Tal como o é a defesa exclusiva de práticas educativas «significativas» (em detrimento das «abstractas», anatemizadas), que estreitam os horizontes dos alunos, tolhendo-lhes a tão apregoada e necessária capacidade de «aplicação dos conhecimentos a novas situações».

E assim se faz dos «projectos educativos» uma existência de papel (perdoem-me dotar de poeticidade aquilo que é uma tragédia nacional).

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