foto: Bruno Espadana

10 novembro 2006

#  Ler a ironia

Frontispício da edição original de 'Flatland'Há em muitas pessoas uma clara incapacidade de ler a ironia. Essa incapacidade é verificável mesmo naqueles que, pela sua profissão, deveriam estar habilitados a detectá-la. Veja-se o texto de Eduardo Prado Coelho (EPC) no Mil Folhas de hoje, em que fala da recente edição portuguesa de Flatland, romance de Edwin A. Abott em que as personagens são figuras geométricas:

[...] A isto deverá somar-se a questão das mulheres. Podemos dizer que aqui ressalta uma certa misoginia do autor. Em qualquer casa, por exemplo, deverá existir uma entrada só para os Homens e uma entrada posterior para as Mulheres. Mas também surge algo de subtil. As mulheres têm forma de agulha, são, por assim dizer, todas afiadas, pelo menos nas suas extremidades. Ora daqui decorre uma condição: podem tornar-se invisíveis. “Colocai uma agulha em cima de uma mesa, olhai-a de lado, de modo a que possais ver todo o seu comprimento; depois, olhai-a de frente e reparai como não vedes senão um único ponto: tornou-se praticamente invisível. Ora é isto mesmo que se passa com as nossas mulheres.” Este estatuto (algo em certa medida equivalente ao famoso aforismo lacaniano: “La femme ça n’existe pas”) torna-as manifestamente perigosas e por isso reprimidas pela ordem vigente masculina.

Não distinguirá EPC a misoginia da ironia? Não perceberá que a exposição de uma situação de facto (o estatuto de submissão da mulher na Época Vitoriana), mesmo que não expressamente contestada, não significa necessariamente uma apologia dessa situação? Não conceberá que por vezes a forma mais eficaz de crítica está no texto “meramente expositivo” e não no declaradamente argumentativo?

Talvez não. Talvez seja preciso fazer-lhe um desenho.



EPC não o diz, mas Flatland teve pelo menos uma edição nacional anterior: pela Gradiva, na colecção Ciência Aberta. Já agora, o livro inspirou um filme.

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