foto: Bruno Espadana

25 abril 2006

#  Não há Simplex para a Educação

'Pontos nos ii' n.º 4Finalmente, duas semanas depois do compromisso, volto ao n.º 4 da revista Pontos nos ii. Um dos temas abordados em mais do que um artigo é o da sufocante burocracia existente no ensino — burocracia que, mais do que sinal de incapacidade administrativa, denota uma verdadeira conspiração: derrotar qualquer veleidade de rigor e exigência pelo peso da papelada. Vejamos:

Gabriel Mithá Ribeiro, artigo «Filhos de Kafka»:
[...] Reduzir, aligeirar, simplificar em muito a carga burocrática nos mais diversificados domínios constitui um dos passos incontornáveis para qualquer melhoria do sistema educativo.
[...] Apesar dos números já de si alarmantes, a verdadeira dimensão do problema tem sido muito mitigada por «pressão estatística» a que se juntam expedientes burocráticos e facilitistas a que os professores são forçados a recorrer para não se penalizarem nem transformarem os seus alunos concretos nas vítimas excepcionais. Só existe luz verde para contornar o insucesso não-importa-como, nunca para travar o facilitismo. [...]

Luís Filipe Torgal, artigo «A ilusão do sucesso educativo»:
[O propósito do Despacho Normativo n.º 50/2005, de 9 de Novembro] é evidente e previsível [...]: extinguir a todo o custo o insucesso educativo num ensino básico onde não exista exclusão social. E alguns dos artifícios engendrados para cumprir esse objectivo não são também inéditos. Pretende-se burocratizar ainda mais o processo avaliativo e transformar ainda mais os professores em mangas-de-alpaca e tutores paternais dos alunos [...].
Com estas «normas orientadoras», o ME irá sem dúvida diminuir a estatística do insucesso escolar que tanto embaraça Portugal e o seu Governo na UE. Contudo, será que estas medidas facultam aos alunos uma melhor formação académica e fazem deles melhores cidadãos? Todos sabemos que não, e são várias as razões que fundamentam esta inabalável convicção.

Sobre este mesmo despacho, escrevi eu na mesma linha de Torgal, a 17/11/2005 (ainda no blogue da Periférica):

Os números negros da Educação em Portugal

O Público online de ontem anunciava que, por despacho do Ministério da Educação, «Os conselhos pedagógicos das escolas básicas terão o poder de decidir se os alunos repetentes em vias de voltar a não passar de ano vão ou não ter aproveitamento» [leia-se, passarão «porque sim»]. O objectivo, anunciavam as televisões à noite, é «contrariar os números negros da educação em Portugal».
Não tenho muitas dúvidas de que tal medida facilitista (a n-ésima...) conseguirá branquear um pouco os números negros — já a realidade, essa ficará mais negra.

Voltando ao artigo de Luís Filipe Torgal:
Por outro lado, é mais uma vez pouco honesto o subterfúgio do ME de pretender solucionar o problema do insucesso escolar enredando os professores num kafkiano emaranhado burocrático. É certo que tal estratagema acabará por levar muitos docentes a exigir menos e a simplificar os seus conteúdos de avaliação de forma a permitir a progressão de todos os seus alunos — e nesta medida os propósitos do ME serão conseguidos. Mas esta prática tem consequências perversas e catastróficas: nivela por baixo todos os alunos, premeia a ociosidade e a irresponsabilidade [...].

Nota à margem: Não sem humor (mas nota-se que o sorriso é amarelo), Luís Filipe Torgal apresenta-se como «Professor de Pré-História e História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea do 3.º Ciclo e do Ensino Secundário, Docente de Estudo Acompanhado, de Área de Projecto, de Formação Cívica e de Aulas de Substituição, Director de Turma e tutor paternal de crianças e jovens, manga-de-alpaca e tudo.» Por distracção, certamente, esqueceu-se da recém-adquirida valência de «entertainer»...

Por falta de (grande) experiência pessoal no ensino pré-universitário não tenho discorrido muito sobre esta questão, mas o ano lectivo que passei a leccionar numa escola secundária (já lá vão dez anos) foi deveras esclarecedor. Em primeiro lugar, mesmo no ensino secundário continuam a verificar-se «milagres» nos Conselhos de Turma, com alunos a passarem de sete ou oito negativas para apenas duas ou três (quando, finda a escolaridade obrigatória, supor-se-ia que a avaliação fosse «a doer»). Depois, verdadeiro terrorismo burocrático, pedem-nos mil e uma justificações por escrito para toda e qualquer descida registada na classificação atribuída no final do período a um aluno, mas se uma turma passar de 70% de «classificações inferiores a 10» (dizer «negativas» é antipedagógico...) para 100% de aprovações ninguém nos interroga sobre o «fenómeno»...

Um exemplo particularmente paradigmático da força do «argumento burocrático» na avaliação vivi-o eu em primeira-mão: pretendendo atribuir um 9 a um aluno que no 2.º Período tinha obtido um 10 a título de «incentivo» (depois de um outro 9 no 1.º Período), com que argumentos tentou a Directora de Turma dissuadir-me? Que o aluno era esforçado? Que, a nível global, o 10 traduzia mais o seu desempenho do que o 9? Que eu era demasiado rigoroso? Que eu não sabia avaliar? Não. Simplesmente, que «ainda nos fazes vir aqui em Agosto», porque o aluno iria certamente apresentar um pedido de recurso. Fiz finca-pé, dizendo que o «argumento do Algarve» não era válido, e não houve qualquer recurso: o aluno certamente fez as contas e constatou que, dada a nota da Prova Global, nem com um 10 no final do 3.º Período conseguiria a aprovação à disciplina.

Nota à margem: O ano lectivo de 1995/96 foi aquele memorável em que o Governo do recém-eleito António Guterres, esse coração-mole, cedeu às pressões de supostas Cassandras (que auguravam uma razia nos Exames Nacionais) e decidiu bonificar em dois valores todas as notas de todas as provas. O que eu e os meus colegas nos rimos — um riso ditado pelo sentido do ridículo —, naquela tarde em Setembro, enquanto registávamos nos livros de termos classificações de 21 e 22...

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