foto: Bruno Espadana

25 abril 2006

#  «Contra a memorização, marchar, marchar!»

'Pontos nos ii' n.º 4Uma das bandeiras preferidas dos pedagogos de algibeira é a oposição categórica à memorização, expressa na forma de anátema ou fat’wa: «Não se decora — compreende-se!» (Ironicamente, tal máxima anti-memorização é das poucas coisas que a generalidade dos alunos sabe na ponta da língua...)

Convém dizer que o princípio atrás enunciado não é totalmente despido de mérito. O problema é que, à custa de simplificações abusivas (as “Ciências” da Educação têm muito de «cognitive science for dummies») e generalizações precipitadas, pretende-se estar perante um axioma ou, termo mais apropriado à mentalidade subjacente, um dogma.

Uma formulação mais correcta do que a anterior seria: «Não se deve apenas decorar — deve-se também compreender.» E já agora, dever-se-á ir ainda mais além, pois o conhecimento não se fica (não se deve ficar) pela mera compreensão.

De facto, os objectivos cognitivos podem ser organizados numa hierarquia de seis níveis (Taxonomia de Bloom*), correspondentes às desejadas etapas do desenvolvimento de competências intelectuais:

  1. Memorização (retenção de informação)

  2. Compreensão (capacidade de chegar a conclusões não directamente contidas na informação memorizada)

  3. Aplicação (abstracção e utilização do conhecimento em casos práticos)

  4. Análise (aptidão para dividir o todo em partes)

  5. Síntese (aptidão para reunir as partes — conhecimento avulso — num todo — conhecimento estruturado — que constitua algo de novo)

  6. Avaliação (aptidão para criticar métodos e resultados: aferir valor e verdade, refutar...)
Desejar compreender sem memorizar nada é como estucar a parede antes de assentar os tijolos: atira-se o gesso à parede, mas não está lá nenhuma parede. E advogar que os alunos não devem ser «ensinados», sendo a função do professor levar cada um deles a «criar o seu próprio conhecimento» (salto quântico para o nível da síntese!) é algo tão incomparavelmente irresponsável e ignorante do que são os processos cognitivos, que a metáfora do começo da casa pelo telhado fica muito aquém.

É por isso que expressões sonantemente poéticas como «chegando-se à memória através do raciocínio» (Odete Santos, artigo «Conhecimento não é para privilegiados», Pontos nos ii n.º 4), não estando nós — não devendo estar — no domínio da poesia, são não só vácuas como perigosas: roem todo um edifício cognitivo pela base, comprometendo-o. E isto não é futurologia barata: olhando em volta, já os vemos a ruir.


* Dizem-me que a Taxonomia de Bloom «já não é muito utilizada». Tal facto, mais do que incorrecção ou desactualização da teoria, não denotará a infestação das “Ciências” da Educação por espécimes a quem a ideia de um conhecimento estruturado, hierarquizado e progressivo desagrada? A quem o próprio conhecimento desagrada? (Et pour cause.)

Etiquetas: