# Tiro pela culatra
O mais recente “Milagre de Lourdes”, corporizado numa média de 14 valores no exame nacional de Matemática, não se repetiu na disciplina de Português: aqui os resultados foram os piores dos últimos 12 anos, descendo pela primeira vez desde então abaixo dos 10 valores (a média nacional foi de 9,7).
Reagindo a estes resultados, Paulo Pinto Mascarenhas colocou no blogue da revista Atlântico um post constituído apenas pelo título:
Eu, pelo contrário, não acho que se esqueceram de facilitar no Português: simplesmente o tiro saiu-lhes pela culatra.
A ideia de pôr de lado Saramago e Pessoa e focar as atenções em temas contemporâneos mais ou menos na moda (Direitos Humanos, Ambiente, Globalização...) era precisamente a de facilitar a coisa. Os autores referidos são supostamente difíceis e, adicionalmente, os temas «contemporâneos» na mentalidade de muita gente permitem aceitar quase tudo o que os alunos escrevam, pois entramos no domínio do opinativo (ou melhor, do «acho que», do «a mim parece-me que») e dos “valorzinhos” (que são sempre estimados, em especial se se papaguearem clichés bem intencionados, isto é, politicamente correctos).
A estratégia adoptada foi simples: na elaboração do enunciado trocaram-se conteúdos relacionados com obras e autores de leitura obrigatória (coisas “sisudas”), por temas “modernaços”, que se convencionou «comunicarem» com os nossos jovens e sobre os quais supostamente todos temos uma opinião.
A lógica subjacente também não é difícil de detectar: para além das razões «motivacionais» anteriores, a análise de excertos de obras de leitura obrigatória exige estudo e a avaliação das respostas tem o defeito de uma maior objectividade (há muito trabalho publicado sobre Saramago e Pessoa e nunca no Secundário se abordam questões que não sejam consensuais entre os peritos); ora, a objectividade não permite passar quem não sabe... Já os temas «do nosso tempo», para além de alegadamente nos saírem pelos poros pelo simples facto de serem «do nosso tempo», sem qualquer necessidade de estudo prévio, têm a adicional virtude de estarem prenhes de subjectividade — o que, para os “pedagogos” que infestam o Ministério da Educação, significa irrefutabilidade: é a carta de alforria para todo o tipo de vacuidade. Ou seja, a linha-mestra da elaboração do exame nacional de Português foi trocar conteúdos pão-pão-queijo-queijo por temas insuflados de uma leveza de ser.
Acontece que não só a maior parte dos alunos preparou-se para o exame a contar com perguntas de análise pão-pão-queijo-queijo dos autores estudados, como nem sequer é verdade que estejam particular e naturalmente atentos ao “ar do tempo”. Por assim dizer, os alunos preparam o palato e o estômago para o pão e para o queijo — mas saiu-lhe um caos culinário que o ignorante-armado-em-chef teve o desplante de tentar fazer passar por requintado soufflé, por expressão máxima da nouvelle cuisine... Resultado: boca seca, indigestão, náuseas e outros sintomas de intoxicação alimentar. Muitos alunos médios bloquearam, pois o teste não se enquadrava nas suas expectativas — nem os alunos «do nosso tempo» se enquadravam no retrato-robot que deles fizeram aprioristicamente os teólogos teóricos das Ciências da Educação. Uma maratona de dez horas para adaptar a posteriori os critérios de correcção às reacções de alunos e professores não foi suficiente para maquilhar o descalabro e evitar o desastre.
Mas o que se passou para um tão grande divórcio entre as expectativas dos autores dos exames e a performance dos alunos? Está bom de ver: os autores dos exames nacionais são professores requisitados exclusivamente para isso (ou seja, não dão aulas). Como constituem uma clique dentro do Ministério da Educação (“pedagogos”, “metodólogos” e quejandos), frequentemente ficam anos — décadas! — arredados das escolas, da realidade da sala de aula. A Escola destes “técnicos” é uma abstracção, só existe na cabeça deles e nos congressos deles. Os alunos, idem. Aquilo que era fácil para eles e para os alunos que existem dentro das cabeças deles não era fácil para os alunos que todos os dias se sentam nos bancos das escolas que existem fora das suas cabeças — naquela coisa a que chamamos Mundo Real e que eles, lá nos seus gabinetes, o mais das vezes esquecem que existe.
Reagindo a estes resultados, Paulo Pinto Mascarenhas colocou no blogue da revista Atlântico um post constituído apenas pelo título:
Esqueceram-se de facilitar no português
Eu, pelo contrário, não acho que se esqueceram de facilitar no Português: simplesmente o tiro saiu-lhes pela culatra.
A ideia de pôr de lado Saramago e Pessoa e focar as atenções em temas contemporâneos mais ou menos na moda (Direitos Humanos, Ambiente, Globalização...) era precisamente a de facilitar a coisa. Os autores referidos são supostamente difíceis e, adicionalmente, os temas «contemporâneos» na mentalidade de muita gente permitem aceitar quase tudo o que os alunos escrevam, pois entramos no domínio do opinativo (ou melhor, do «acho que», do «a mim parece-me que») e dos “valorzinhos” (que são sempre estimados, em especial se se papaguearem clichés bem intencionados, isto é, politicamente correctos).
A estratégia adoptada foi simples: na elaboração do enunciado trocaram-se conteúdos relacionados com obras e autores de leitura obrigatória (coisas “sisudas”), por temas “modernaços”, que se convencionou «comunicarem» com os nossos jovens e sobre os quais supostamente todos temos uma opinião.
A lógica subjacente também não é difícil de detectar: para além das razões «motivacionais» anteriores, a análise de excertos de obras de leitura obrigatória exige estudo e a avaliação das respostas tem o defeito de uma maior objectividade (há muito trabalho publicado sobre Saramago e Pessoa e nunca no Secundário se abordam questões que não sejam consensuais entre os peritos); ora, a objectividade não permite passar quem não sabe... Já os temas «do nosso tempo», para além de alegadamente nos saírem pelos poros pelo simples facto de serem «do nosso tempo», sem qualquer necessidade de estudo prévio, têm a adicional virtude de estarem prenhes de subjectividade — o que, para os “pedagogos” que infestam o Ministério da Educação, significa irrefutabilidade: é a carta de alforria para todo o tipo de vacuidade. Ou seja, a linha-mestra da elaboração do exame nacional de Português foi trocar conteúdos pão-pão-queijo-queijo por temas insuflados de uma leveza de ser.
Acontece que não só a maior parte dos alunos preparou-se para o exame a contar com perguntas de análise pão-pão-queijo-queijo dos autores estudados, como nem sequer é verdade que estejam particular e naturalmente atentos ao “ar do tempo”. Por assim dizer, os alunos preparam o palato e o estômago para o pão e para o queijo — mas saiu-lhe um caos culinário que o ignorante-armado-em-chef teve o desplante de tentar fazer passar por requintado soufflé, por expressão máxima da nouvelle cuisine... Resultado: boca seca, indigestão, náuseas e outros sintomas de intoxicação alimentar. Muitos alunos médios bloquearam, pois o teste não se enquadrava nas suas expectativas — nem os alunos «do nosso tempo» se enquadravam no retrato-robot que deles fizeram aprioristicamente os teólogos teóricos das Ciências da Educação. Uma maratona de dez horas para adaptar a posteriori os critérios de correcção às reacções de alunos e professores não foi suficiente para maquilhar o descalabro e evitar o desastre.
Mas o que se passou para um tão grande divórcio entre as expectativas dos autores dos exames e a performance dos alunos? Está bom de ver: os autores dos exames nacionais são professores requisitados exclusivamente para isso (ou seja, não dão aulas). Como constituem uma clique dentro do Ministério da Educação (“pedagogos”, “metodólogos” e quejandos), frequentemente ficam anos — décadas! — arredados das escolas, da realidade da sala de aula. A Escola destes “técnicos” é uma abstracção, só existe na cabeça deles e nos congressos deles. Os alunos, idem. Aquilo que era fácil para eles e para os alunos que existem dentro das cabeças deles não era fácil para os alunos que todos os dias se sentam nos bancos das escolas que existem fora das suas cabeças — naquela coisa a que chamamos Mundo Real e que eles, lá nos seus gabinetes, o mais das vezes esquecem que existe.
Etiquetas: Educação
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