foto: Bruno Espadana

19 maio 2006

#  Mitos

No editorial do Público de ontem («Mayflower, Anne Frank e Ayan Hirsi Ali»), escrevia José Manuel Fernandes (JMF):
Em 1620 um pequeno barco cruzou o Atlântico com um grupo de ingleses que fugiam das perseguições religiosas. Chamava-se Mayflower e a história dos que neles viajaram é um dos mitos fundadores do Novo Mundo — um Novo Mundo onde as convicções religiosas não fossem motivo de ostracismo, de perseguição ou de morte.
Curiosamente, uma parte dos que viajaram nesse navio tinha antes procurado refúgio na Holanda, primeiro em Amesterdão, depois em Leiden. [...]

Esta é a base para JMF estabelecer um paralelo com Anne Frank e Ayan Hirsi Ali, mas o que me interessa realçar é outra coisa: é opinião de muitos historiadores que a “fuga” dos puritanos do Mayflower não se deveu a perseguições religiosas de que fossem vítimas, mas à sua própria intolerância religiosa: não lhes agradava o laxismo da Igreja de Inglaterra, que tinha ficado a “meio caminho”, permitindo uma certa liberdade de culto (e obrigando-os, por isso, a conviver com outros, menos “puros”); não lhes agradou também a tolerância holandesa (que, por sua vez, via com maus olhos o rigorismo religioso dos recém-chegados). Haveria, sim, algum ostracismo (como há quase sempre num grupo mais liberal relativamente a alguém mais “beato” — e vice-versa) — mas não «perseguição ou morte».

(O “laxismo” da Igreja de Inglaterra e da Coroa foi, também, um dos factores que ditou a Guerra Civil Inglesa, liderada pelo “puritano” Oliver Cromwell, que decapitou o rei; este, casado com uma católica, era acusado de tolerar os “papistas”.)

O mito da “fuga libertadora” do Mayflower é, pois, isso mesmo: um mito. Em vez de liberdade, os “Peregrinos” procuravam, isso sim, um sítio onde pudessem livremente ser intolerantes e evitar o contacto com “O Outro, o impuro”.

Nota à margem: Da mesma forma, não é por qualquer forma de pacifismo que os judeus ultra-ortodoxos israelitas recusam o serviço militar, mas sim porque as Forças Armadas do seu país incorporam mulheres, esses seres “impuros” dotados de vagina, com quem seriam obrigados a partilhar as fileiras — e, está bom de ver, um tal convívio afastá-los-ia de Deus...

Seguem-se duas citações. A primeira é da Wikipédia. Para quem ponha (prudentemente) em causa a credibilidade de uma publicação em que qualquer um pode colaborar, segue-se um excerto da Columbia Encyclopedia, da responsabilidade de uma das universidades da Ivy League (crème de la crème das universidades americanas).

Wikipédia:
Although not actively persecuted, the group was subjected to ecclesiastical investigation and to the mockery, criticism, and disfavor of their neighbors (Columbia Encyclopaedia). They left, not for religious freedom, but because there was too much freedom of religion in England and they wanted it to be stricter. These separatist "Pilgrims" settled in Leiden for 12 years, but by 1617 a poor economy, and concern about the Dutch influence upon their community convinced many of them to move on, this time to the New World.
Concerned with the morals of the time in the Netherlands, and with their children being brought up in a Dutch environment, they decided to move to a place better-suited to them; and in 1620, they set sail on the ship Mayflower from Plymouth Harbor, bound for the Americas. These people became known as the Pilgrim Fathers.

The Columbia Encyclopedia, Sixth Edition. 2001-05:
Although not actively persecuted, the group was subjected to ecclesiastical investigation and to the mockery, criticism, and disfavor of their neighbors.
To avoid contamination of their strict beliefs and to escape the hated church from which they had separated, the sect decided to move to Holland, where other groups had found religious liberty [...].
Life in Holland was not easy, however, and the immigrants found the presence of radical religious groups there objectionable. Dutch influence also seemed to be altering their English ways, and the prospect of renewed war between the Netherlands and Spain threatened. For these reasons they considered moving to the New World.
[...]
The Leiden group constituted only 35 of the 102 passengers on the Mayflower; many of the English group gathered for the trip were not even separatists (they were thus called “Strangers”). Nonetheless, the Leiden group (the “Saints”) retained control and were the moving force behind the emigration. While most of the Leiden Pilgrims were English, modern scholars have found that several were French-speaking Walloons and one was a Pole.

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