foto: Bruno Espadana

19 abril 2006

#  Convém não esquecer...

O apelo de Nuno Guerreiro para que os mortos do massacre de 1506 sejam recordados com velas no Rossio desencadeou fortes reacções. Sobre elas, diz o autor da Rua da Judiaria:

O assinalar do 250º aniversário do terremoto de Lisboa de 1755, em Novembro passado, não levantou em ninguém este tipo de questões (nem devia ter levantado, obviamente). Ninguém correu para os teclados a debitar prosa rancorosa nos comentários dos blogs; ninguém clamou “mas isso foi há tanto tempo, precisamos é esquecer” ou “... e então os terremotos do Irão e da Turquia, o ‘tsunami’ do Sudoeste Asiático ou as vítimas do Katrina?”; ou sequer “é preciso recordar também todas as vítimas de todas as catástrofes naturais ocorridas na história desde os tempos do Dilúvio até à desastrosa resposta da Administração Bush à tragédia do Katrina.” Ninguém se sentiu manipulado. De cabeça, lembro-me que houve extensos artigos na Imprensa, livros, reportagens de televisão, cerimónias oficiais, missas e procissões em memória das vítimas de 1755. Tudo isto sem que o relembrar desta fracção de memória fosse vista como uma qualquer maquiavélica maquinação. Mas uma tentativa semelhante para lembrar os mortos do massacre de 1506, aparentemente e para muitos, terá sempre “outra carga” — mesmo quando a data não é assinalada oficialmente; mesmo que a esmagadora maioria dos portugueses a desconheça; mesmo quando muitos apenas a descobriram recentemente, através da leitura de um notável romance histórico escrito por Richard Zimler, um judeu americano que mora em Portugal. [...]
O meu amigo Lutz Brückelmann tem razão e a sua conclusão certeira deixa-me francamente desgostoso (algo que ele também antecipou): nada disto teria acontecido se os mortos não fossem judeus portugueses; se este desafio à lembrança e à preservação da memória não tivesse sido feito por um judeu; caso não tivesse partido de um blog marcadamente judaico escrito por um judeu. Esta “questão” não existiria (nunca!) se eu não fosse quem sou...

O Nuno Guerreiro tem alguma razão, claro: não há dúvida de que os judeus continuam a... incomodar muita gente — mas não me parece que a principal razão subjacente às reacções ao seu apelo se devam ao facto de os mortos serem judeus e o apelo ter partido de um judeu. Não digo que essas não sejam razões presentes, mas penso que a principal é outra: é que a turba sanguinária, os culpados, os assassinos eram portugueses (e outros europeus) “normais”, i.e., cristãos. Ou seja, relembrar o massacre é relembrar um crime dos antepassados (de facto ou em termos culturais) da maioria dos que leram o seu apelo.

A grande “vantagem” do terramoto de 1755 é que foi uma matança sem culpados (pelo menos quanto aos mortos iniciais; depois houve linchamentos, autos-de-fé e outros que tais): assinalar a efeméride não é apontar o dedo a ninguém.
De igual forma, lembrar os mortos do Katrina tem duas (ou três) vantagens: sendo uma catástrofe natural, não se acusa ninguém; é sempre mais uma oportunidade de autocomprazimento com a nossa bondade e sensibilidade («coitadinhos dos pretos, a pena que eu senti deles...»); e — bónus que para alguns é tudo — temos mais um argumento para detestar e insultar o Bush, que, não tendo originado a catástrofe, foi negligente (ou mesmo «maquiavélico»!) na gestão da crise.

O mesmo não se passa com o pogrom de há 500 anos: houve culpados e os culpados (por “herança”) somos nós. Daí o desconforto. Obteria uma reacção igual (ou parecida) alguém — especialmente um negro — que pretendesse assinalar o massacre de Wiriamu.


P.S. Aproveito para perguntar ao Nuno Guerreiro (se por acaso ler isto) ou a quem me puder ajudar: há algum bom livro (em português, inglês ou espanhol) sobre o pogrom de 1506?

Etiquetas: , ,