foto: Bruno Espadana

20 abril 2006

#  Será mesmo preconceito nosso?

Voltando ainda ao Prós & Contras do passado dia 10, veio-me à lembrança a intervenção de um dos líderes da Comunidade Islâmica em Portugal* (presente na assistência), que apontava como sinal de discriminação em relação ao Islão o facto de, no Ocidente, a imprensa se referir à Al-Qaeda como uma organização terrorista «islâmica», mas não se referir à ETA como uma organização terrorista «cristã» ou «católica». Infelizmente, também aqui, não houve quem na sala desse a esta intervenção a devida réplica. Alguns rasparam a superfície da questão, mas não foram suficientemente claros e exactos para que o comum dos espectadores entendesse a diferença fundamental. E, assim, a falácia passou.

O dirigente da Comunidade Islâmica em Portugal tem certamente alguma razão quando fala em discriminação — como todos os líderes (ou não) de todas as minorias em todo o mundo. Mas o exemplo que dá é, como disse, falacioso. Desde logo, uma falácia de base: a Al-Qaeda, com ou sem propriedade, reclama-se defensora da fé e dos valores muçulmanos e promotora da sua hegemonia; já a ETA, por mais cristãos ou católicos que os seus membros possam ser, proclama-se defensora do povo basco — da sua identidade, da sua independência política — e orienta-se por uma ideologia marxista (como, originalmente, a OLP). O que opõe a ETA aos Estados espanhol e francês é a identidade basca (seja lá o que isso for) — não a identidade (ou a prática) religiosa; já o que separa a Al-Qaeda e grupos satélites do Ocidente (ou de outros muçulmanos) é, segundo essas organizações, a identidade (ou a prática) religiosa. Por isso, as situações são, à partida, bem distintas.

Existe ainda nas palavras do tal dirigente muçulmano uma falácia adicional: é que o rótulo «islâmico» não é usado tão ao desbarato como ele nos tenta convencer, nem os rótulos «cristão» ou «católico» são omitidos de organizações terroristas se tal se justifica.
No primeiro caso — para além da já citada OLP (que, de facto, integrava originalmente muitos palestinianos cristãos) —, ninguém se refere aos grupos terroristas/separatistas curdos da Turquia como «islâmicos», mas simplesmente como «curdos», «nacionalistas curdos» ou «separatistas curdos» — porque é a identidade curda, e não a religião, que os separa dos (e os opõe aos) turcos. E mesmo em casos em que existe uma dupla clivagem étnica e religiosa, como é o da Chechénia, a imprensa ocidental destaca mais a natureza étnica do conflito do que a religiosa (apesar da crescente “islamização” do separatismo checheno).
No segundo caso, é mentira que, justificando-se o rótulo, a imprensa não se refira aos grupos terroristas/separatistas “cristãos”, “católicos” ou “protestantes” como tal. Veja-se o caso do conflito da Irlanda do Norte: de um lado os separatistas «católicos» do Sinn Féin (literalmente, «Nós Mesmos») e do IRA (embora, na designação, o grupo apenas se reclame «republicano» e «irlandês»), do outro os «protestantes» fiéis à Coroa inglesa (que, exactamente por isso, se referem a si mesmos mais como «unionistas» e «lealistas» do que como «protestantes» — haja ou não aqui hipocrisia).

Fica, pois, claro que a prevalência da designação «grupo terrorista islâmico» não é sinal de discriminação em relação aos seguidores do Islão. Outros sinais haverá, mas este não é um deles.
Ajudaria à diminuição de tal discriminação uma clara demarcação dos muçulmanos «moderados» face às acções e objectivos dos muçulmanos terroristas — uma demarcação sem relativizações ou «contextos», sem pigarreios, sem «poréns», sem «nos entantos». Uma demarcação denotadora de condenação inequívoca. Mas nem como exercício de hipocrisia para consumo externo conseguimos ouvir isso deles. A voz da Ummah fala mais alto.


* Terá sido apenas uma escolha menos feliz na hora de decidir a designação da comunidade, mas remeter Portugal para um complemento circunstancial de lugar («Comunidade Islâmica em Portugal», e não «de Portugal» ou simplesmente «Portuguesa») contribui pouco para a credibilidade do autoproclamado sentimento de pertença.

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