foto: Bruno Espadana

05 setembro 2007

#  O céu (microconto)

O motorista tinha acabado de sair com o seu autocarro da central de recolha quando, olhando o céu, pensou algo abstractamente que naquele dia ele estava excepcionalmente branco e uniforme, como uma folha de papel virgem. Sorriu ao lembrar-se dos seus desenhos da infância, em que o céu era uma estreita barra de azul remetida para a margem superior do papel, deixando uma vasta área da folha totalmente branca. Recordava-se também do fascínio com que, mais tarde, recebera o conceito de que ele (o céu) começava logo acima das nossas cabeças, dos telhados das casas ou das ervinhas do chão. (A partir desse dia iniciático, os desenhos demoraram mais tempo a acabar — e a mãe teve de lhe comprar lápis azuis extra.)

Mas daquela vez as coisas eram diferentes. De alguma forma, a criança que todos os dias pinta a paisagem em que nos movemos tinha-se fartado do desenho mais cedo do que o habitual, e nem a raquítica barrinha azul na borda do papel contrariava a brancura do firmamento. O motorista já tinha visto muitos dias com aquela nebulosidade a que chamava chapada, feita de uma camada uniforme de nuvens finas, amorfas e sem interesse, qual edredão comprado na loja dos trezentos, que tornam indeterminável a posição do sol e dão ao dia uma luminosidade incómoda — mas nunca se deparara com um branco tão imaculado. «Branco mais branco não há», pensou, um pouco triste por não ter ninguém com quem partilhar a piada que acabara de fazer.

Entretanto chegou à primeira paragem do seu percurso, onde entrou uma dezena de passageiros de caras ovinas. O cheiro acre do suor encardido penetrou nas narinas do motorista, trazendo-o para cotas mais terrenas.

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