foto: Bruno Espadana

17 julho 2007

#  A ignorância que mais nos convém

pintura de Hieronymus Bosch (detalhe)Um post da semana passada publicado no De Rerum Natura fez-me desenterrar o livro Histórias da Luz e das Cores, de Luís Miguel Bernardo (Editora da Universidade do Porto, 2005), que há mais de ano e meio luta por atenção na base de uma pilha que entretanto se formou, qual sucessão de estratos geológicos. Ainda não é desta que lhe dedico a atenção merecida (o primeiro volume consta de 700 páginas, e as prioridades são outras), mas não resisti a dar uma vista de olhos mais profunda do que aquela que ditou a sua compra.

A certa altura, deparo-me com a história de um certo N. F. Villette, que nos sécs. XVII-XVIII foi construtor de «espelhos ardentes», com os quais concentrava os raios solares, incendiando madeira e abrindo buracos em chapas metálicas. Conta-nos o autor:
Este espelho esteve em risco de ser destruído e o seu construtor maltratado pelo povo de Liège, instigado pela superstição e ignorância.

Luís Miguel Bernardo transcreve então o relato que em 1837 Julia de Fontenelle fez dos acontecimentos:
Em 1713, em quanto o espelho de M. Villette estava em Liege, o outomno foi muito chuvoso, o que fez levantar o preço do paõ. A malquerença publicou que aquellas chuvas continuas e aquella carestia de paõ eram devidas a este maldito espelho: Formou-se um grande ajuntamento tumultuoso que se dirigio a caza de Villette para o maltratar e quebrar o seu espelho ardente. Felizmente a cidade de Liege era governada por um prelado esclarecido. [...]

O relato de Julia de Fontenelle continua com a transcrição da carta pastoral de Joseph Clement, bispo e príncipe de Liège (etc.), enviada aos curas e padres da sua jurisdição:
[...] Tendo-se-nos muito respeitosamente representado que se tinha espalhado um motim, na nossa cidade de Liege, que o chamado N. F. Villette, residente ha 15 ou 18 annos nesta cidade, attrahia com o seu espelho as chuvas com que o nosso paiz e os lugares circumvisinhos saõ castigados dos seus peccados, achamo-nos obrigados, pelo cuidado que devemos ter no nosso rebanho, a declarar, como fazemos por meio d’esta, que é um erro semeado pelos ignorantes ou mal intencionados, ou mesmo pelo espirito de malicia, que, affastando o nosso povo da ideia e da segurança de que é pelos seus peccados que elle é castigado, lhe faz attribuir a um espelho o castigo de Deos. Eis porque declaramos que este espelho naõ produz nem pode produzir senaõ effeitos naturaes e muito curiosos, e que, julgar que elle attrahe ou produz as chuvas, e attribuir-lhe assim o poder d’abrir ou fechar o Ceo, o que naõ pertence senaõ a Deos, seria uma reprehensivel superstiçaõ.
Ordenamos aos nossos curas e pregadores da nossa doutrina, a quem este erro possa ter enganado, de dispersuadir o povo de tal erro.

E Luís Miguel Bernardo conclui:
A Villette e ao seu espelho ardente valeu o bom senso do bispo Clement.

Não sei se será intencional, mas o autor de Histórias da Luz e das Cores parece mais cauteloso na escolha das palavras do que a autora do século XIX, que brinda o bispo de Liège com o epíteto de «prelado esclarecido». Wishful thinking: conforme se conclui das palavras de Clement, ao prelado não o movia a luta contra a ignorância e a superstição, mas a defesa da ignorância que mais lhe convinha.

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