foto: Bruno Espadana

30 junho 2006

#  Free World

Capa de 'Free World'Acabei de ler Free World — A América, a Europa e o futuro do Ocidente (ed. Alêtheia), de Timothy Garton Ash. Segundo a contracapa, Václav Havel descreveu-o como «Um apaixonante manifesto a favor do alargamento da liberdade e de uma nova era na política mundial».

Free World é muito mais do que isso. É simultaneamente informativo e opinativo. É equilibrado. É daqueles livros em que certas páginas têm tanto que merece ser sublinhado e destacado que, quando vamos a ver, não conseguimos destacar nada (o que chega a ser irritante).

Verdadeiramente, Free World é um livro a não perder.

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#  Le beurre et l’argent du beurre

Segundo um estudo referido em Free World (Transatlantic Trends, 2003), dos «71% [de europeus] que responderam que queriam que a União Europeia se tornasse uma superpotência, 49% mudavam de opinião se isso implicasse um aumento nas despesas militares». O melhor dos dois mundos. O poder indolor. Ouro sobre azul.

A Europa pode ser o continente mais laico, mas continua-se a acreditar em milagres.

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#  Reconhecermo-nos

Já o disse diversas vezes, sempre que comparei as minhas expectativas com a entrega àquilo em que acredito: «Sou pessimista, mas ajo como se fosse optimista.»

Ontem, enquanto lia as últimas páginas de Free World, reconheci-me:
Existe uma sábia divisa para todos aqueles que se batem por um mundo livre: «pessimismo do intelecto, optimismo da vontade»*. [...] Esperamos o pior, mas trabalhamos para o melhor.

* Em nota, Timothy Garton Ash acrescenta: «Este lema é muitas vezes atribuído ao marxista italiano Antonio Gramsci, que o empregava no cabeçalho do seu jornal Ordine Nuovo. De facto, Gramsci popularizava as palavras que tinham sido originalmente cunhadas pelo autor pacifista francês Romain Rolland

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29 junho 2006

#  O Código Penal tal como ele deveria ser

[...]

LIVRO II
Parte especial

TÍTULO I
Dos crimes contra as pessoas

[...]
CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.°
Aborto
1- Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2- Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar, não estando legalmente habilitado para tal nos termos do Artigo 142.º infra, é punido com pena de prisão até 3 anos.
3- A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.

Artigo 141.°
Aborto agravado
1- Quando do aborto ou dos meios empregados resultar a morte ou uma ofensa à integridade física grave da mulher grávida, os limites da pena aplicável àquele que a fizer abortar são aumentados de um terço.
2- A agravação é igualmente aplicável ao agente que se dedicar habitualmente à prática de aborto punível nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo anterior ou o realizar com intenção lucrativa.

Artigo 142.°
Interrupção da gravidez não punível
1- Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.
2- A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3-
2- O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4- 3- Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.
[...]


E já agora, mudem o Capítulo II para fora do Título I: um feto não é uma pessoa.
Ou então renomeie-se o Capítulo II, para o mais adequado «Dos crimes contra a mulher grávida» — pois é essa a pessoa em causa, cujos direitos e dignidade temos de salvaguardar.

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#  Porque o crime está na lei

Enquanto não há versão portuguesa...
I'M PRO CHOICE and I VOTE!

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#  Correlação

O Rui Ângelo Araújo, na senda do Rui Bebiano, escreve:
Na Galiza, território com 3 milhões de habitantes, publicam-se 652.000 exemplares do jornal La Voz de Galicia e 304.000 do Faro de Vigo. Em Portugal (10 milhões de almas) a miséria é esta: Correio da Manhã, 116.000; Jornal de Notícias, 97.000; Público, 45.000; 24 Horas, 42.000; Diário de Notícias, 35.000.

Eu cá não embarco no nacional-derrotismo nem em extrapolações apressadas: tiragem não quer dizer leitura.

Já alguém se deu ao cuidado de cruzar os dados da imprensa com os do consumo galego de castanhas assadas?! Façam isso e só depois conversamos.

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28 junho 2006

#  A praga do bufo-ambiental

Inspirado pela notícia de última página do Público de hoje («Bonecos para facilitar abate de aves protegidas à venda em Portugal»), Fernando Ruas deverá propor na próxima assembleia da Associação Nacional de Municípios Portugueses que a ANMP passe a vender por catálogo réplicas em plástico dos fiscais do Ministério do Ambiente (conhecidos na gíria autárquica pelo termo técnico «bufos ambientais»).

O catálogo contará inicialmente com dois modelos:
  • Mod. 02-46061: Bufo ambiental em plástico vibrante — Indispensável para a caça ao Bufo Ambiental (45€)

  • Mod. 02-46032: Bufo ambiental em plástico — Para eliminar os animais indesejáveis* (21€)

* Inclui elementos do Tribunal de Contas, da Polícia Judiciária (particularmente os especializados no combate à corrupção) e de outras espécies infestantes.

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#  Ainda as «pedradas» de Fernando Ruas

O meu amigo Carlos Chaves (que ultimamente anda a escrever em El Gran Masturbador) sugere uma interpretação alternativa para as palavras do presidente da Câmara de Viseu: da maneira que ele vê as coisas, Fernando Ruas defenderá que a forma de evitar os «obstáculos» postos pelo Ministério do Ambiente é charrar os respectivos fiscais.

Está bem pensado. Dessa forma os fiscais poderiam dizer como o patinho da história: «Não shinto* nada...» — ou, como os autarcas desejariam, «Não vejo nada...»


* Apropriadamente (vê-se agora) com pronúncia viseense.

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#  Política troglodita

Fernando RuasSegundo o Público de hoje (leio a versão online), Fernando Ruas, presidente da Câmara Municipal de Viseu e presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, apelou a que se corresse à pedrada os fiscais do Ministério do Ambiente. As suas palavras foram:
Corram-nos à pedrada, a sério. Arranjem lá um grupo e corram-nos à pedrada. Eu estou a medir muito bem aquilo que digo.

Deduzo que Fernando Ruas ainda não tenha ultrapassado a romântica fantasia que eu mantive durante a minha infância: a de um heróico Viriato que, à frente de uns Lusitanos andrajosos (mas trogloditicamente nobres), descia das alturas dos Montes Hermínios e corria à pedrada o invasor Romano.

Hoje, o autarca (que segunda-feira assegurava falar «a sério» e «medir muito bem» o que dizia) relativiza as coisas: o sentido não era literal, não houve apelo à violência sobre funcionários do Estado no exercício das suas funções (o que é bom, pois de outra forma configuraria um apelo a ofensa à integridade física qualificada, art.º 146º do Código Penal).
O presidente da sua Assembleia Municipal consegue ser mais novilínguico: diz que não entendeu «as palavras do senhor presidente da Câmara como querendo dizer atirar pedras às pessoas», mas sim como um apelo à «concertação» entre serviços...


Já agora, a razão do apelo ao apedrejamento:
Nós queremos gente que vá ajudar as freguesias, não queremos gente que obstaculize o seu desenvolvimento.

(A Natureza é, como se sabe, um obstáculo ao desenvolvimento.)

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22 junho 2006

#  Cosmética (ou como fabricar sucesso a martelo)

Mais à frente no Público, uma notícia sobre os Exames Nacionais do 9.º Ano. Uma vez mais, o facilitismo entrou em acção:
Estavam todos a contar com grandes clássicos [Os Lusíadas, o Auto da Barca do Inferno]; afinal o Ministério da Educação reservou-lhes um texto sobre a escada da vida e um outro sobre a produção de cacau. “Era muito fácil porque era actual”, avaliava Lourenço Ramos Pinto, óculos na ponta do nariz, aspirante a ciências. O texto acerca da produção de cacau abordava a problemática do trabalho infantil. E o da escada era, apontava Joana Xavier, uma simples metáfora sobre a vida.
[...] E o desabafo partilhado à saída mais parecia um velho disco de vinil riscado: o grau de dificuldade “foi ridículo”.
Não faltaram as comparações com a prova de 2005, ano de estreia dos exames nacionais. “Foi mais fácil do que a do ano passado”, comentava Diogo Allen, que, tal como muitos outros, a fez para treinar. “Nem saiu orações”, interrompia um colega. “Só palavras derivadas”, contrapunha um outro. “E discurso indirecto”, acrescentava um terceiro. “E cruzes!”

Os efeitos perversos de tal facilitismo são fáceis de apurar: basta ouvir os alunos. Se já é mau que, de um exame, quem o realizou diga que «foi ridículo», muito pior são as extrapolações que daí os alunos fazem:
“Não saiu nada do que demos, [estudar] foi uma perda de tempo!”, indignava-se Leonor Sousa Freitas. [...] “A professora estava sempre a dizer que Os Lusíadas [de Camões] e o Auto da Barca do Inferno [de Gil Vicente] eram muito importantes, porque iam sair no exame! Não saiu nada disso!”

A curto prazo, o facilitismo gera uma aparência de sucesso (através da diminuição do insucesso manifesto). Mas a longo prazo implica num desprezo da escola e do que lá se aprende. E o consequente insucesso — um insucesso mais difícil de ultrapassar,

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#  Do “eduquês” ao “politiquês”?

Nos últimos tempos não tenho lido a imprensa, razão pela qual não tenho escrito muito no blogue. Mas logo hoje que decidi comprar o Público deparo com um artigo assinado por Paulo Rangel, jurista e deputado do PSD.

Conforme se depreenderá dos excertos que cito e das partes que destaco, no geral concordo com o autor. No entanto, não posso deixar de fazer alguns reparos.

Parece que a ministra da Educação disse algures que “o sistema educativo está demasiado centrado nos professores”. Parece, aliás, que anunciou uma verdadeira “revolução coperniciana”, afirmando que, de ora em diante, ele passaria a estar centrado nos alunos, que constituem afinal a sua razão de ser. Trata-se de um dos mais surpreendentes enunciados políticos dos últimos tempos. Só mesmo ultrapassado pela surpresa que causou o aplauso quase unânime da opinião publicada e pública a tal posição de princípio.
Surpresa que resulta da minha convicção de que o sistema educativo tem essencialmente gravitado em torno do aluno ou, para retomar uma fórmula de Ortega, em torno “do aluno e da sua circunstância”. Com efeito, basta compulsar o debate educativo travado em Portugal para perceber que a agenda pública foi sempre marcada pelo interesse imediato dos alunos. [...]

E mais para o fim:
De algum modo, o Governo, com este seu discurso e com esta sua prática, importou, para o âmbito mais largo da política educativa, a “centralidade” que o aluno já detinha na metodologia pedagógica. O que, para usar um jargão conhecido, significa que o “eduquês” vai ser agora convertido em “politiquês”.

Não sei se será inocência de Paulo Rangel, se uma maneira de assobiar para o lado, tentando disfarçar as responsabilidades que os governos do seu partido também têm na situação do ensino em Portugal, mas é por demais evidente (particularmente para quem leu o livro de Nuno Crato) que, antes mesmo das medidas anunciadas pela actual equipa ministerial, os alunos já detinham a “centralidade” pedagógica e política. Em Portugal, o eduquês e o politiquês são siameses — e não é de hoje.

Ainda sobre a “disputa pela centralidade” entre alunos e professores:
[...] Na verdade, tal perspectiva faz reentrar, pela porta larga, a “luta de classes” na escola: de um lado, os alunos e seus pais; do outro, os professores. De um lado, os explorados; do outro, os exploradores. De um lado, a sociedade civil; do outro, uma burocracia dominante. Eis uma perspectiva que, em caso e tempo algum pode aceitar-se, pelo seu carácter redutor, simplista e demagógico.

Sobre a exigência e a autoridade (ou a falta de uma e de outra), diz o deputado, e bem:
Os dois principais problemas da escola portuguesa são a falta de exigência e a falta de autoridade. A falta de exigência lê-se directamente nos resultados dos alunos e nas estatísticas internacionais. E deve-se, antes de mais, à escassez de mecanismos de avaliação intercalar como são as provas regulares (orais, escritas, práticas) e os exames de âmbito escolar, regional e nacional. Mas deve-se também à impossibilidade ou à imensa dificuldade de fazer reprovar — uso o verbo “reprovar”, e não o verbo “reter”, intencionalmente — um aluno que não atinge os níveis suficientes. Não vale a pena ter ilusões: a reposição dos níveis de exigência terá de passar por um período, mais ou menos doloroso, de crescimento da taxa de insucesso escolar.
Já a falta de autoridade e disciplina no ambiente escolar tem sido aferida largamente de modo empírico. Não restam, todavia, dúvidas de que ela resulta de um estatuto disciplinar frouxo, de uma prática reiterada de laxismo e de uma estrutura “democrática” de gestão. [...]

A inevitabilidade do incremento (temporário) do insucesso — se se avançar por uma via de maior rigor e exigência, com o objectivo de uma diminuição final desse mesmo insucesso — explica o porquê de nenhum governo ter a coragem de apontar tal via: o aumento do insucesso poderá ser temporário, mas a certeza do sucesso final não existe (a pedagogia não é uma ciência exacta), e de qualquer forma os governos em democracia são julgados no curto prazo...

Voltando ao artigo de Paulo Rangel, escreve ele sobre a missão da escola:
[...] A escola não pode abdicar de ser a depositária de uma missão institucional objectiva: a transmissão social e “intergeracional” do saber. Ela não tem, por isso, de se tornar num espaço de felicidade ou realização individual: tem, isso sim, de desempenhar uma função.

De facto, a ideia de que o principal objectivo da escola é ser «agradável» aos alunos (a utopia e o logro da aprendizagem como prazer imediato e permanente) tem sido muito responsável pelo esvaziamento dos currículos e pela falta de exigência (lá voltamos nós). A título de exemplo, Nuno Crato cita um autor que chega a advogar a eliminação da disciplina de Matemática, pois a sua dificuldade supostamente geraria exclusão social. Paulo Rangel também fala disso:
[...] Eis o que, aliás, está bem patente na última das novidades dadas pela ministra da Educação: a de que vão ser abolidos os “trabalhos de casa”. E mais ainda, na sua justificação: a de que os “trabalhos de casa” feitos em casa reproduzem a discriminação social ou “sócio-económica”. Julgo que não vale sequer a pena dissertar sobre o tremendo erro que esta medida representa e o que ela implica para a indução ao estudo, a virtude do esforço, a aprendizagem individual e o sentido da responsabilidade ou do dever. [...] E quanto ao inacreditável argumento social, ele arranca do mais preconceituoso dos preconceitos [...]

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16 junho 2006

#  Nariz de vidente (nanoconto)

A segunda aparição confirmou a impressão da primeira: o Anjo usava In Excelsis Deo.

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14 junho 2006

#  Crescer (nanoconto)

Em toda a sua vida leu um só poema. De cada vez que o relia, em vez de mudar de página, mudava ele.

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12 junho 2006

#  Socorro! Sou de uma espécie em vias de extinção!

Que os últimos anos têm assistido a um “retorno ao sagrado” já muita gente o disse. O que eu não imaginava era que, em Portugal, esse retorno fosse tão acentuado.

Comparo os dados do World Values Survey (WVS) para Portugal (1990, 1999) e não restam dúvidas: com muito raras excepções, os portugueses estão mais conservadores e mais crentes — não tinha razão o cardeal patriarca de Lisboa quando afirmava há uns tempos que a incredulidade está na moda (ou algo semelhante).
(Apresento aqui apenas alguns gráficos relativos a quatro aspectos da crença. O site do WVS tem dados de centenas de perguntas agrupadas em sete categorias.)

Percentagem dos que não acreditam em Deus Percentagem dos que não acreditam no Céu/Paraíso Percentagem dos que não acreditam no Inferno Percentagem dos que não acreditam na Vida após a Morte

A situação é particularmente dramática no que toca aos ateus (aqueles que afirmam não acreditar em Deus): de 14.3% em 1990, éramos após menos de uma década apenas 3.1% (um decréscimo superior a 80%).

No “ecossistema religioso” português, os ateus são uma espécie em vias de extinção! Qualquer dia já nem na Serra da Malcata nos encontram.

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09 junho 2006

#  A boçal manada (2)

Ri-me (e sempre que recordo ainda me rio) da inocência utópica/edénica de uma amiga que aos 27 anos regressou à Universidade para tirar o seu segundo curso superior. Dizia ela que contava encontrar mentes prenhes de ideias, discussões apaixonadas e informadas dos temas da actualidade, dos temas de sempre, das leituras feitas ou a fazer. Em vez disso, encontrou boçalidade, vacuidade, carneirismo, cinzentismo, a “rebeldia de pacotilha” de quem não tem interesses nem objectivos dignos desse nome. Procurava interlocutores, encontrou apenas consumidores do oxigénio da sala (no período diurno).

Penso nisto enquanto, no autocarro, observo a t-shirt de um estudante: «STUDENT CROSSING», alerta o sinal onde se vê alguém de gatas, de garrafa na mão. Raramente uma classe se autodefine de forma tão exacta — e tão despudorada.

Sinal de perigo 'Student Crossing'

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08 junho 2006

#  As minhas aventuras no país dos CTT

Há mais de um ano escrevi no blogue da Periférica («CTT, esse valor seguro»):
Quando entro numa Estação de Correios, à cautela tiro logo um formulário de reclamação.

Ontem, uma vez mais, confirmou-se a sageza da jogada de antecipação.
O novo “esquema” dos CTT* (coisa com um mês, disseram-me) consiste em não usar a máquina de franquiar se o cliente optar pelo correio normal: as vantagens dos automatismos estão agora reservadas para o Correio Azul; quem quer pagar menos tem de esperar enquanto o funcionário, de stick UHU na mão, cola um a um os selos no envelope (9,55€ requer mais do que um selo).
A medida, obviamente, comporta a diminuição da produtividade do funcionário. A ideia, também obviamente, é “amestrar” o cliente: mais cedo ou mais tarde ele aprende que correio normal = seca, impacienta-se (imaginem o tempo de espera para vários envelopes) e rende-se ao Correio Azul.

A reclamação já vai a caminho. Mas tendo os CTT a exclusividade do serviço, sabemos quão roto é o saco em que ela cairá.


* Novo, porque não é o primeiro “esquema” que detecto. Aconselho a leitura de um post que escrevi a 26/03/2005: «CTT burla clientes».

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#  Semântica

Abu Mussab al-ZarqawiO Público online noticia a morte de Abu Mussab al-Zarqawi, líder da facção iraquiana da Al-Qaeda.

Enquanto leio o desenvolvimento mais recente («Blair diz que morte de al-Zarqawi é “boa notícia”», 10h42), reparo nos títulos dos textos anteriores: «Primeiro-ministro do Iraque confirma morte de al-Zarqawi» (09h18) e «Líder da Al-Qaeda no Iraque foi assassinado» (08h54).

Clico na notícia das 09h18. Quando, poucos minutos depois, volto atrás, a notícia das 08h54 passou a chamar-se «Líder da Al-Qaeda no Iraque foi morto em combate».

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#  Não se confirmou

Ontem fui ver O Código Da Vinci. Contrariamente aos receios da Igreja Católica e da Opus Dei, não fiquei com pior opinião da Igreja Católica e da Opus Dei.

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07 junho 2006

#  Sintomático?

Sobre o incumprimento da profecia catastrofista de Nostradamus (que alguns diziam referir-se ao dia de ontem), escreveu Rui Bebiano:

Seis do seis do seis

Absolutamente decepcionante. Afinal parece que não aconteceu nada de particularmente obscuro no «dia da besta». Uma nuvem negra que fosse, uma marca traçada a vermelho-sangue nos muros da cidade, uma mensagem iniludível, cheia de triplos sentidos e de maus prenúncios.

E Pedro Mexia:

O fim do mundo

O 6 do 6 de 6 passou e o mundo não acabou. Aliás, quem como eu já assistiu ao fim do mundo sabe que não é coisa que aconteça duas vezes.

Terá sido a cautela que os levou a esperar pelo 7/6/6 para “postarem” o comentário?


Adenda: Alguns crêem que a data 6/6/6 deve ser considerada segundo o calendário juliano, pois o calendário gregoriano só foi adoptado 16 anos após a morte de Nostradamus. Ou seja, o «dia da besta» será 19 de Agosto*. Que mais não seja por ser dia de descanso (sábado), certamente no pasará nada...

* O calendário juliano vai actualmente 13 dias atrasado em relação ao gregoriano; adicionalmente, o seu primeiro mês é Março, pelo que Agosto é o sexto.

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06 junho 2006

#  Apelo

de Nelson d'Aires (fotógrafo que conheci no 3.º Encontro de Poesia de Vila do Conde):

Pede-se a quem tenha encontrado na madrugada de terça-feira (06 de Junho) uma mochila preta lowepro no passeio em frente ao Hospital Privado dos Clérigos, o favor de a entregar a nelson d’aires. No interior da mochila encontra-se:
  • uma carteira com todos os documentos pessoais
  • um telemóvel nokia de cor prateada (que estava desligado)
  • uma Nikon D1x com o número de série 5121942
  • uma objectiva nikon 20mm f2.8
  • uma objectiva nikon 50mm f1.4
  • um flash SB-28dx
  • um gravador de voz
  • e mais umas quantas coisas pequenas que não me consigo de momento lembrar
Esta mochila, como já disse, é para mim muito importante. Em Dezembro despedi-me de um trabalho de dez anos para recomeçar uma nova vida. Uma vida dedicada à fotografia documental. Desde Janeiro até ao dia de hoje, tive de investir tudo para divulgar o meu trabalho e neste momento não tenho nada, a não ser um saldo negativo no banco. Se por acaso você souber quem tenha achado a minha mochila com a minha vida lá dentro, por favor informe-me e acima de tudo informe de que a mochila não pertence a uma pessoa rica nem a uma pessoa que vive bem. Essa mochila é o meu investimento e ao devolver-me pode ter a certeza que me vai ressuscitar.

obrigado.
nelson d’aires

Mais pormenores no blogue de Nelson d'Aires.
Situação resolvida. Mais pormenores no blogue de Nelson d'Aires.

Eduardo Pitta: (c) Nelson d'AiresFrederico Lourenço: (c) Nelson d'AiresJosé Mário Silva: (c) Nelson d'AiresValter Hugo Mãe: (c) Nelson d'AiresJosé Luís Peixoto: (c) Nelson d'AiresJá não te aguardo, adio-me #1: (c) Nelson d'AiresJá não te aguardo, adio-me #2: (c) Nelson d'Aires

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05 junho 2006

#  Qual Green Card, qual quê! (6)

The New Yorker cartoon caption contest #54 — a minha contribuição:

(c) Gahan Wilson / The New Yorker
«Dead on time!»

Desenho de Gahan Wilson / The New Yorker

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02 junho 2006

#  Demagogia ministerial

Lia-se no Diário de Notícias de terça-feira passada:

Ministra traça retrato arrasador das escolas

A ministra da Educação traçou ontem um quadro arrasador da falta de orientação das escolas e dos professores para os resultados dos seus alunos. Turnos da manhã reservados a turmas dos melhores alunos e filhos dos funcionários da escola, preocupação quase exclusiva para o cumprimento “burocrático-administrativo” das leis e distribuição das melhores turmas aos melhores professores são alguns dos exemplos apontados por Maria de Lurdes Rodrigues para dizer que a escola tem-se preocupado em dar aulas, mas não com o sucesso educativo dos alunos.
[...]
Quanto ao funcionamento da escola, afirma a ministra, “tudo se cumpre, burocrático [sic] e administrativamente, de forma perfeita” e vem a inspecção “que confirmará a conformidade com as normativas legais”. Mas neste processo, garante, não há uma organização em função dos resultados. Assim como não há na questão dos apoios educativos: “uma vez sinalizada, a criança não sai da sinalização”. Logo, os apoios não ajudam a criança a ultrapassar as dificuldades de aprendizagem e são apenas “um conjunto de práticas ao serviço da sua própria existência”.
Os professores não passaram incólumes pelo discurso da ministra, que considerou ser uma classe com uma cultura profissional (que comparou com os médicos) que não tem como objectivo o sucesso educativo dos alunos. “Não são orientados para os casos mais difíceis. Os melhores professores ficam com os melhores alunos e os docentes com pior estatuto na casa levam com as turmas mais difíceis”, afirmou a ministra, garantindo ainda não haver trabalho em equipa nas escolas. O discurso foi recebido com palmas pouco entusiasmadas da assembleia.

1. Sim, são enormes as diferenças entre a classe médica e a classe dos professores (particularmente os que trabalham para o ME), saindo estes a perder da comparação. Por isso é que a ministra a faz. Como dizia um ex-colega meu, «os professores são uma classe sem classe» (e, diga-se, ele mesmo era a prova de tão demolidor diagnóstico). A tal não será alheio o facto — há que reconhecê-lo — de, ao contrário dos médicos, uma percentagem considerável dos professores serem-no por recurso.

Em especial na última década ou década e meia, para Medicina vai apenas a elite estudantil — os melhores de entre os que demonstraram capacidade de trabalho, perseverança e focalização num objectivo difícil de alcançar; é, convenhamos, um bom princípio. Contrastantemente, para professor vai muitas vezes quem «não arranjou mais nada» (donde se pode inferir o seu grau de motivação); e se falarmos das áreas de Letras, temos por vezes o refugo do refugo: não só não arranjaram mais nada como, anos antes, acharam por bem «fugir a Matemática».
(Lembro-me que quando a minha irmã — aluna de “5” à infame disciplina-papão — escolheu seguir Humanidades para ser professora de Francês, os colegas lhes perguntavam, num tom próximo do escândalo, «o que fazia ela ali». Deveriam senti-la como uma intrusa, um Bill Gates a jantar na sopa dos pobres...)


2. Sim, é também verdade que grande parte dos médicos e enfermeiros têm particular apetência pelos casos mais difíceis. Uma amiga minha, ex-enfermeira, disse-mo por diversas vezes: a chegada de um paciente mais grave ou com um quadro clínico mais raro mobilizava (alguns diriam «atraía») todo o hospital. E todos conhecemos alguém que se queixa de não ter uma doença «suficientemente grave» para que o médico se interesse por ela...

Mas há que reconhecer a grande diferença entre o acto clínico e o acto educativo. Desde logo, regra geral o paciente quer curar-se e está disposto a muito esforço para consegui-lo. Mesmo que a colaboração do paciente não exista (p. ex., um doente em coma), os fármacos, as terapêuticas e as intervenções cirúrgicas podem ainda assim surtir algum ou mesmo muito efeito. E até um suicida falhado (que supostamente queria morrer) pode ser tratado e curado contra a sua vontade (pelo menos dos males do corpo que se auto-infligiu).

Pelo contrário, é frequente um aluno não querer aprender, estar pura e simplesmente “a borrifar-se” quanto ao resultado da sua passagem pelos bancos da escola. E não há ensino/aprendizagem sem a colaboração activa e o interesse de quem está (deveria estar) lá para aprender — muito menos com a efectiva oposição, a despudorada recusa do esforço, da concentração, de tudo aquilo que não pareça logo «interessante» e «estimulante» (o que, na visão de alguns — não só alunos — quer dizer «fácil», «imediatista» e «vácuo»). Não há pedagogia que salve um cérebro “educativamente comatoso” ou “intelectualmente suicida”.

Sobre isto, escrevi há quase um ano num outro blogue um post intitulado «O valor da Saúde e da Educação», onde se podia ler:
[...] os portugueses resignam-se ao sistema educativo público que têm — pouco exigente, pouco rigoroso, desincentivador de docentes e discentes, fraco em resultados — porque os portugueses não dão valor à educação. À saúde, sim, mas não à educação: de uma ida ao hospital não desejamos apenas a alta — esperamos a cura; já da escola, espera-se apenas a passagem de ano (ou, vá lá, a “ocupação dos tempos livres” da miudagem), não a aprendizagem. Isto prende-se com diferenças no estabelecimento de relações de causalidade: os efeitos de maus cuidados de saúde podem constatar-se (da pior forma) em questão de horas, enquanto que o presente envenenado de um sistema educativo pouco exigente e pouco rigoroso demora uma geração a fazer-se notar [...].

3. Quanto à «preocupação quase exclusiva para o cumprimento “burocrático-administrativo” das leis», a ministra também terá a sua razão. Perde-se mais tempo com isso do que seria desejável, desleixando a qualidade pedagógica das aulas — e ainda mais o rigor e a exigência científica (o que para mim é imensamente mais importante).

Mas pergunto à ministra: se «vem a inspecção “que confirmará a conformidade com as normativas legais”», se a Inspecção-Geral da Educação diz que «tudo se cumpre, burocrático [sic] e administrativamente, de forma perfeita», a culpa não será da IGE, que se concentra exclusivamente em questões formais? (Verificar se as actas estão ou não “trancadas” é um dos principais fetiches dos inspectores...) Se as pessoas que trabalham na IGE são mangas-de-alpaca há anos afastados do ensino, escolhidos sabe-se lá com base em que critérios, e não têm capacidade para julgar a qualidade de uma aula (e por isso fogem da sua observação), a culpa é de quem? Tudo o que de bom e mau se passa na Educação é, em última análise, responsabilidade do titular da pasta; com maioria de razão no que diz respeito ao serviço de inspecção da dita. Não se pode soterrar — atormentar, mesmo — professores e escolas em burocracia e depois acusá-los de se preocuparem demasiado com essa mesma burocracia.


Para finalizar, pergunto: esta comparação que Maria de Lurdes Rodrigues fez entre médicos e professores — sendo as circunstâncias de uns e de outros tão diferentes — dever-se-á ao desconhecimento da realidade médica ou ao desconhecimento da realidade da Educação? No primeiro caso, é apenas lamentável (quem não sabe, faz melhor em ficar calado até se informar); no segundo caso, é muito grave: uma ministra da Educação tem de conhecer as condicionantes com que trabalham os que estão abaixo dela — que mais não fosse, porque muitas dessas condicionantes foram criadas ou mantidas pela acção política da ministra.

Há, claro, uma alternativa: a de a ministra saber que a comparação é falaciosa. Simplesmente, o potencial de convencimento de uma comparação tão arrasadora falou mais alto.

Entre uma ministra ignorante e uma ministra demagógica, a escolha não é fácil.

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